segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Narração Sustentável em Retiro pela Cultura de Paz

A narração dramatizada Árvore Generosa já me acompanhou numa adoção de praça pela Fundação Toyota em Indaiatuba, nos colégios públicos em que dei aula e estudantes me diziam que lembravam da mãe, em parceria com a finada editora Cosac Naify e em sarau no Espaço Tempo de amigos na zona norte. Por isso quando uma amiga recomendou que oferecesse essa contação no retiro 108 Horas de Paz e a produção topou, me animei! 

A história de Shel Silverstein entrou no dia em que estudamos sobre meio ambiente, então tinha tudo a ver com as reflexões que traz sobre explorar a natureza, egoísmo, valorização capitalista do que não é essencial à vida, amizade, exploração, doação, saudade, entrega...

Esta narração foi diferente das que gravei pro meu canal ao longo de 2020 porque pela primeira vez dramatizei a trajetória da personagem ao vivo numa videoconferência, testei enquadramentos com a produção, ajustei elementos de cena, chamei meu marido para gravar, fiquei na expectativa de entrar mais cedo porque todo dia algum palestrante caía devido à conexão instável...

O frio na barriga, nosso companheiro de guerra, também foi outro: a transmissão em vídeo das pessoas foi se transformando em várias telinhas só com o nome delas, via a mediadora, mas a interação só aconteceu antes e depois de contar. Fora a emoção que oscila entre o ensaio e a contação... Claro que deu para matar a saudade das borboletas no estômago, mas imagino que a primeira narração ao vivo será uma farra quando a quarentena deixar...

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Rebordosa Eleitoral

 

Noivinha com cara de poucos amigos
entre os vizinhos, futuros bolsonaristas,
no pré, desconfiada que só uma
mãe de santo mudaria a política brasileira
Ainda arrasto correntes pela eleição aqui em meu semi isolamento. Ainda...! Devo ressaltar que essa rebordosa das urnas não se deve ao vira voto de véspera não ter sido o bastante. Há pelo menos dois anos buscamos alfabetizar politicamente os desavisados no chão de escola - e para isso nem preciso contar só com amigos educadores, os próprios estudantes já questionam os conservadores  de que a cidade retrocedeu na maior parte dos serviços que os impacta. Se considerar que artisticamente fazemos essa conscientização indireta - trabalhando Brecht e Augusto Boal, entre outros - lá se vão seis anos. Esse desabafo introdutório é para comprovar aos colegas esquerda caviar: militância emergencial de véspera não é o bastante. Nem nosso trabalho de formiguinha nos bastidores educativos é. Acrescento ainda que os amigos da saúde mental, ativismo sustentável, assistência social, militância feminista e criação artística engajada fazem parecido comigo: mediação criativa e conscientizadora para colaborar na leitura crítica e sensível do mundo. E ainda assim não damos conta. Precisamos que revezem conosco daqui até o próximo pleito, já que vários de nós têm adoecido, brochado, aposentado, entregue os pontos e operado no piloto automático.

Cada vez mais tenho compreendido e concordado com uma frase duma amiga de trabalho e criação que foi-se embora para o Nordeste: "nasci no Brasil, mas não mereço em morrer em São Paulo". Não por acaso eu e meu companheiro temos sonhado alto em fugir para Pernambuco. Parafraseando Crioulo "não há amor no Tucanistão". Nesse bode existencial de intolerância tucana, tenho tido delírios devido à insônia nos quais questiono o que os eleitores municipais tem contra nós se levamos material de casa para aulas mais criativas, brigamos pelos materiais sonegados para o quartinho de despejo da Educação de Jovens e Adultos, disputamos arduamente espaço na condução pública para carregar livros de arte e acessórios de cena, enfrentamos assédio para chegar à escola brincando e debatendo feminismo, reinventamos aulas para que percam o ranço dos professores conteudistas e tecnicistas que já tiveram... Porque a maioria reelege - ou se abstém - votando ou passando a responsa adiante para que siga no poder governos que concedem benefícios, compram votos, terminam obras na véspera da votação e ainda aprova maior desconto previdenciário dos servidores. Esses que tentam fazer algo pelo cidadão, mas com os serviços sucateados não tem sido muito simples. Porque essa medo e desconfiança de sair da gaiola política se a maioria reclama desde a última eleição que não está bom?

Não muda muio o panorama onde moro, a cidade mais rica do Brasil, que vota como mulher de malandro: a situação está ruim, mas não rompe o relacionamento abusivo porque não questiona mais as amarras invisíveis depois de tanta opressão imobilizadora. Antes o cassete do parceiro abusivo do que uma novidade que mal conseguem imaginar. É real aquela máxima: não me espanta, mas afeta. Entendo e concordo que o bom combate não é derrota, que a dupla Boulos e Erundina é gigante e que quando a política retrocede são anos ou décadas historicamente para avançarmos novamente rumo à justiça social, mas me animei sagitarianamente demais com a eleição de vereadores e alguns prefeitos representando a diversidade, tentei conter meu otimismo patológico sem sucesso; tenho sentido a prosa poética como uma utopia para a qual caminhamos, sem muita chance de atingir e bem, não sei vocês, mas queria Erunda de vice antes que ela vá militar no céu. #prontofalei Fora as bizarrices que encararemos no serviço público sem recurso ou agenda o bastante para todo auto cuidado que precisaremos, mas tá bem, chega de café da tarde com militância educativa por hoje.

Não, não estou em TPM, mas sim, tenho tido insônia e como Zeca Baleiro "ando tão à flor da pele que qualquer beijo de novela me faz chorar". Todo esse textão desabafo para concluir que a militância da esquerda precisa funcionar como uma corrida de revezamento: quando aqueles da linha de frente perderem o gás e precisarem recarregar as baterias, que os ativistas emergência pré eleição assumam o serviço pesado. Sim, o movimento #viravoto nos reacendeu uma esperança, poesa e diversão na campanha. Talvez as pessoas sensíveis com senso de justiça estejam numa sofrência maior agora. Podemos nos unir numa espécie de AA e se comprometer "só por hoje não acharei que o pobre de direita aceitará dividir seu pão com ovo".

Brincadeiras à parte estou há dias a fim de pedir aulas de como ser um sagitariano pé no chão para um sobrinho de 8 anos que há algumas votações disse que se fosse adulto, não votaria no Bolsoliro e tendo acompanhado a fundação do 1o partido socialista popular periférico anti capitalista percebeu meio precocemente "mas eles não deixariam nosso candidato ganhar". Vamos falar o que para essa turminha? Eles é que tem que ajudar transformar uns olhares por aí.

Agora com a licença de vocês, mas preciso por um sono rebelde em ordem...

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Querida Avó


Tenho sentido um chamado de te escrever. Evitei sem entender muito o porque das fugas. Talvez por não ter te conhecido. Por já ter partido. E não ter ideia de como dar palavra ao que não vivenciamos. Mas decidi descobrir como contatar você rascunhando. Porque? Bem na última faxina olhei novamente o porta retrato com meus outros avós e quis chorar. Ou porque comecei ler uma escritora negra que me lembrou outra feminista falar que provavelmente sou a primeira da minha geração a ter voz. Talvez escreva por você vó. Uma vez recebi uma chamada de reportagem sobre a vida sexual das avós. Corri. Por sempre ouvir que era autoritária, pouco participativa, bruta e indesejada. Será que foi assim contigo vó? Porque a lenda familiar dava conta de que era feliz com meu avô. O da foto. Por aqui, gerações depois já estamos na reparação histórica sexual.
Tem algo curiosos entre nossas conexões: você e o vô tinham nomes como os dos estudantes com os quais brinco, porque foram muito arrojados no batizado de todos. Seriam frutos de criatividade cabocla nos registros? Vô dizia tanto que éramos caboclo com caboclo que passei os últimos e recentes anos me embrenhando Brasil adentro. Achava que levantava a versão dos povos originários que sempre senti falta na escola. Mas fui atrás de mim vó. E me achei: nos chás das avós brejeiras das minhas primas. Nos causos ouvidos dos indígenas. Na noção de parentesco entre etnias deles. Na hospitalidade, comida sertaneja e dificuldades passadas pelos quilombolas. Levo o máximo possível para sala de aula vó.
Quero dividir sonhos: eu e meu companheiro sonhamos em fugir para o interior. Ele é descendente de nordestinos. Sei que vocês no interior sonhavam em fazer a vida aqui na cidade grande. Mas ela já detonou a saúde de todos nós. E acredito no que dizem os acolhedores mestres afro griô: "quando não sabemos para onde ir, temos que voltar para onde viemos". Para onde voltaria se fosse viva vó?
Lembrei que mãe e tias sempre lembram como choravam quando casavam e mudavam para longe da família de origem. Minha terapeuta conta de famílias em que a maioria não podia nem derrubar lágrima. Deve ser verdade que somos as primeiras a ter voz em gerações. É um pouco por isso que escrevo. A escritora que falei - Grada Kilomba - fala em seu livro/ tese que a pulsão de escrever vem da necessidade de ter voz, ser ouvida. O que você cochicharia ao pé do ouvido, próximas do fogão a lenha? Os sem terra urbanos do centro oeste me contaram do movimento das novas gerações - nós - a voltar pro sertão, interior... Sempre lembro da mãe contar como trabalhavam por comida, casa, móveis e cavalo nas fazendas do norte do Paraná. Talvez por não ter vivido isso, lembro mais forte dos cheiros de café, terra vermelha e chuva. A região nem tem mais esses aromas. Mas meu coração e nariz são apegados aos afetos em tons de sépia.
Por falar em fotos antigas tudo que conheci de você vó foi a foto em que segura minha mãe nos braços e está de joelhos, porque cegou temporariamente, fez promessa e voltou a ver. Por isso mãe tem nome da protetora da visão. Eu por um triz não ceguei também: as 7 cirurgias do glaucoma congênito, mais muitos colírios deixaram tudo sob controle. Esse vem e vai de questões oftalmológicas, sei lá só a psicanálise explica. Mas é gozado como tem qualquer coisa de simbólico nisso: vemos mais abusos eternos com dessossego que nossas antepassadas. Isso também é perturbador.
A saudade do meu viciante chão de escola também perturba. Não te contei? Estamos mais ou menos presos há seis meses por conta do risco de pegar Covid19. Dizem que vocês viveram outros outros sustos, por outras doenças. Não tem sido fácil: perdemos pessoas queridas, quando temos que sair tememos tudo e todos, pessoas que se amam há um semestre na mesma casa brigam por muito pouco... Talvez o clima mesmo da quarentena nos deixe saudosas. Sinto falta da piscina do Sesc (acredita que nadei com senhoras que comemoravam a viuvez que viviam?). Tenho saudade de fazer teatro sem intermediação de telas digitais.
Não dividi contigo né? Temos artistas em famílias e somos dos bons. Ouvimos que lá atrás alguns de nós éramos violeiros de moda caipira. Hoje em dia os que resistiram na trincheira das artes são do teatro. Só na base da criação para resistir a tudo isso.
E por falar em criação... De tanto querer e adiar te escrever lembrei da minissérie A Casa das Sete Mulheres. Acho que nesse movimento feminista e de círculo de mulheres entendo o que me encantava tanto nessa produção: elas também viviam aquele cotidiano doméstico sem muitas possibilidades. É a mesma razão do quanto me atraía, mas sofria com a personagem Ana Terra, do Érico Veríssimo, que enfrentava a mesma pasmaceira doméstica, mas sonhava com mais. Como talvez pode ter sido seu dia a dia vó.
Talvez por ser uma das primeira entre Machados, Duarte, Mendonça e Brandão a ter voz, te escrevo para contar que sinto muito por não ter ouvido a sua. Por todas as cartas à mão que dão saudade do cheiro paranaense serem do meu avô.
Espero que meus sonhos, lutas, ideais e escolhas não te decepcionem.
Te <3 sem nem entender.
Sua neta arteira, Fran

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Arte como canoa para travessia

Depois de meses entocada voltei à travessia duas cidades para lá de casa. Há mais de quatro ciclos lunares entocada, com espaçadas escapadelas de abastecimento, auto cuidado e ajuda aos pais. O mais perto possível. Nas poucas saidinhas mais contramão de casa, rezei na condução pública, tomei banho de álcool em gel em cada encostada.
Mas esta semana subi na moto como quem sobe o Corcovado. E a despeito do motivo melancólico, fiquei maravilhada com o sol na cabeça, o vento no rosto, o reconhecimento de cada café, bairro, parque, avenida da cidade em que trabalho e o espanto de só ter atingido esse pertencimento lá por ter criado raízes no trabalho pela 1a vez.
Apesar do coração na mão, meu companheiro tinha razão: o lugar é bonito. Não sabia o que dizer, talvez meti os pés pelas mãos, mas as máscaras também previnem bolas fora para tagarelas como eu. Ainda não tinha vivido a estranheza de consolar e me despedir sem abraços. Bom, estávamos meio de bode da pasmaceira do isolamento. De sopetão ficou intenso e derradeiro demais.
Lá para as tantas não sei se a asma me tirou o ar, se não saber lidar com os momentos corta pulsos me tirou o chão ou se aos 45 do 2o tempo tive medo de estar no grupo de risco e longe de casa, tentei tomar um ar com o marido, que trouxe um capuccino pra sei lá, eu não me partir em lágrimas. Há meses sentia falta desses cafés em que os baristas põem tanta coisa, que meu pai diz que comemos uma torta e não tomamos um drinque cafeinado. Me despedi atabalhoada e de novo, a garupa me envolveu em memórias e afetos: recordando e celebrando cada esquina santoandreense, fazendo festa entre o vento, cabelo e o capacete e pela primeira vez em décadas abraçando o sol felizaça. Branquelos como eu não tinham boas memórias com o sol antes do corona19.
Aterrizei da carona em casa e já despenquei culpa abaixo. Afinal, tinha perdido minha segunda mãe. Me senti mal pela animação de sair da toca depois de quase criar mofo nela. Minha gatinha Peteca miava enlouquecida. Entrei num estado roupão: só queria sofá. Acho que meu marido, que tinha ido ao banco, adivinhou e trouxe fast food para nos animarmos com o almoço junkie. De lá para cá embarquei numa rave burocrático-acadêmica entre videoconferências, repartições públicas e home office. Não dei conta de muito do que costumo usar pra manter a sanidade em tempos sombrios. Ainda assim manter o que não tinha negociação de prazo foi uma despistada boa da tristeza. E sabe-se lá porque boa parte dos sensíveis como eu tentam dar perdido no mal estar. Obviamente que encontrar o que ela me deu ou amigos perguntarem como estava já produziram muito desaguar.
Quem me resgatou desse vai e vem do luto foi - sempre ela - a arte. Partilhei estudos e práticas de Teatro do Oprimido(TO) numa conferência sobre ensino cênico na internet. Costumo resgatar os causos do começo do TO e dos praticantes pra contextualizar nessas trocas. Podia usar uma meia dúzia deles, mas contei do grupo das Marias que fazem faxina e atuam. Minha 2a mãe cuidou da minha casa e da de vários parentes por décadas. Estudar o que se ama tem disso: a gente se melhora no processo. Há dois anos estudei reforma trabalhista e esse grupo das Marias com meus alunos, entre os quais muitos já limparam casas, mudei meus olhares e questionei várias coisas com minha 2a mãe. Mas quando ela dizia que não era como desconfiava que podia ser, ninguém mudava a visão dela...
Foi ainda a música que me aproximou dela na semana quase se esvaindo: estudei percussão e canto de trabalho. Nessa segunda pesquisa, os professores partilharam canções de comunidades interioranas de trabalhadores em que depois deles entoarem a letra, somos convidados a emendar criando versos e então nossos mestres voltam ao refrão. Fiz versos pra amiga: "minha amiga foi embora/ já chorei meia semana/ com a cantoria lembrei/ que a vida é boa".
Já estamos há mais de 120 dias tentando acostumar com as incertezas. Com a passagem da minha 2a mãe, não tenho mais ideia quando os rompantes chorosos voltarão. Mas uma coisa tenho sentido pulsar nessa entressafra sanitária que estamos tolerando: a arte é minha canoa para travessia desse maremoto; E você, em que suporte embarcou para não temer essa tsunami?

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Mosaico de Rostos

Compulsiva por estudo: sou dessas. Até mais do que em relação ao trabalho. Mal comecei as férias da pós e das disciplinas pro futuro mestrado e já embarquei nas conferências meio cênicas e meio digitais da comunidade Quinta Parede. Uma amiga da outra pós criou esta comunidade no Fuçabook para discutir os desafios de ensinar teatro na pandemia.
Quando participei e ainda discutíamos isso, parece que outros professores, de outras áreas, mas com dificuldades semelhantes já traziam as desigualdades sociais que tornam a arte educação quase missão impossível em diferentes redes públicas de ensino.
Agora na nova fase da gente se rever no Google Meetings sorteamos, experimentamos, dividimos alegrias, propomos saídas para dificuldades e discutimos as avaliações propostas pelas fichas de jogos teatrais da Viola Spolin. Em algumas das propostas que essa teatróloga vivenciou com operários mergulhamos mais lúdicos que nunca. Até meu marido ensaiou participar da sala ouvindo minha animação no escritório. Ganhamos uma presença, um viço, um jogo de cintura e nos divertimos criando juntos. Noutro sorteio fizemos mas sentimos falta de uma continuidade pra dinâmica e na derradeira, quase nada da ficha pode ser transplantado pro ambiente chamado por um dos participantes de "mosaico de rostos". Dá até vontade de escrever uma dramaturgia com essa inspiração. Experimentar na internet com amigos "arteiros" é bem pedagógico: também temos turmas animadas, brochadas e semi engajadas nas escolas offline.
Em duas semanas experimentaremos jogos de teatro do oprimido de Augusto Boal! E até lá, a expectativa e animação põem lenha nessa fogueira teatral. Pra nós, que fomos picados pelo bichinho das coxias segue fazendo falta o encontro, o efêmero, o espontâneo, a integração do grupo, o jogo de cintura com um parceiro de cena e ressignificar objetos duma sala menos pessoal que nossas casas... Mas também fazemos parte daqueles aos quais a falta dos aprendizes, colegas de estudos e parceiros de criação está tão inflacionada, que qualquer ajuste digital que possibilite parte disso é abraçado prontamente.
Meu único problema de fazer curso totalmente virtual é que isso me revelou uma stalker e tanto. Algum outro participante acena afinidade comigo e já confiro perfil, quero ser amiga, mas estou segurando minha onda já que mal dou conta do que tenho no colo atualmente. Pouco depois do início da pandemia li que nos períodos mais tensos politica e economicamente na Europa, fazia-se teatro apesar de perseguições e outras dificuldades. Claro que apesar da gravidade do que vivemos, não é possível comparar a esses períodos históricos. Mas justamente por ser ocasião menos pesada, ainda damos um jeito de superar os paus técnicos para experimentar e descobrir como (re)fazer vínculos em tempos sombrios.
Ops, por um triz esqueci dessas pequenas grandes alegrias: rever amigos dos palcos em cena e eles festejarem nossa "chegada" virtual. Que a gente sustente essas pontes online para depois refazê-las offline.

sábado, 20 de junho de 2020

Construção meditativa de pau de chuva

Só no isolamento entendi um amigo judeu que afirmava ser o teatro a verdadeira religião dele. Apesar de também vir duma paixão pelas coxias (os bastidores teatrais) e de ser meio budista, meio macumbeira, na quarentena experiencio que a arte é minha religião raiz. Claro que me apoio noutras "muletas": me movimentar faz com que a serotonina fique num nível razoável para quando der uma encrenca consiga vencer a prostração e resolver. O estudo do que amo alimenta as inspirações, dá ideias e permite trocas que nos instigam. Meditar me deixa confortável nessa mente, que é a única que tenho. Ver filme ou série às vezes anestesia, às vezes traz novas descobertas - como agora que confiro Segunda Chamada, sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA) em que trabalho. Mas como é possível prever pela lista de auto cuidado acima, não dá para manter a constância em tudo nem em tempos pandêmicos. Quando a agenda ou a grana aperta, recorro à arte. Esta é uma obviedade para quem ensina artes, mas me esquecer na experimentação artística e vivenciar como ela reverbera para além da expressão ou linguagem que exploro no momento são encantos que surgiram com a pandemia. Farei uma associação didática com minha própria espiritualidade: embora meu coração seja macumbeiro, a cabeça é budista. E nesta segunda, aprendemos e debatemos temas que nunca ouvi nas outras muitas religiões que conheci: apego, auto centramento, aversão, inexistência intríseca do que nos faz sofrer, iluminação, reino dos seres famintos, não identificação com nossas emoções, obtusidade mental, entre outras cabeçudices. Não por acaso estou entre esses retiros, estudos e meditações há 16 anos: também sou cabeçuda. Volta e meia ouvimos dos facilitadores e mestres sobre auto geração de energia autônoma para romper a eterna sede dos carentes que sempre buscam tomá-la do que se apegam. É mais uma das tantas teorias que só a pira do corona me fez sentir. E enquanto não reverbera no corpo, é muito difícil que qualquer conhecimento se fixe em mim. Nos últimos dias andei meio caída: emoções angustiantes, que minha vigília crítica não conseguia jogar para escanteio, burocracias empacadas, estudos meio quadrados tomando a maior parte do tempo, cansaço de situações repetitivas cujas sugestões de resolução que muitos propuseram já foram exploradas à exaustão, mas somos incapazes de sustentar as melhoras. Quando fui estudar um livro que quero contar, encontrei entre os elementos de cena uma flauta diferente que já tinha imaginado de outra forma porque estava encostada. Desencanei de ensaiar a história que contarei e fui transformar essa flauta num pau de chuva. Planejei como tenho dificuldade de fazer em minha própria vida: separei tudo que usaria antes de começar. Ressignificar o mundo à nossa volta viabiliza que a gente ensaie pra mudar o mundo pra além do nosso universo particular. Criar sensibiliza a gente: minha gata causou brincando com os materiais que usaria, mas o processo me deixou tão encantada que ri dela feito criança. A arte é um terreno em aberto para nossa expressão: me satisfiz mais com as cores e brilhos do que com o som. E embora seja um instrumento indígena, me arriscar serviu também para ser mais generosa comigo. Não ouvi o que pensei que ressoaria, mas rebatizei para pau de garoa (meu marido está chamando de pau de sereno), mas me senti tão presente, esqueci tanto da vida que fiquei rindo espontaneamente, a playlist do Antonio Nóbrega combinou tanto com o momento que relativizei o som fugir do que imaginei. Na vida costumo ser mais sargenta comigo. A arte nos torna melhores porque comecei meio desgostosa com o que contei e terminei não só feliz, mas percebendo a mudança do estado de espírito e ficando presente o suficiente para curtir essa transição. A partir desse movimento interno terminei lidando melhor com todos no entorno. É uma meditação em movimento porque ficamos no momento em que agimos, mas também percebemos maior ânimo para as coisas externas. A arte possibilita que a gente exercite nossa criatividade, descubra caminhos, passe por cima do que não funcionou e celebre se esquecer entre tecidos, glitter, tesoura, grãos, durex, pincel e fita crepe. Que a gente leve esta criatividade ensaiada para todas áreas da vida que precisam. Listo essas impressões marcantes porque já ouvi e li várias espiritualidades que oferecem o mesmo. Mas eu cheguei em cada ficha que caiu fora dos retiros, vivências, rodas e workshops que experimentei - alguns desses também me fizeram bem, mas nem tanto quanto a experimentação artística. Que vocês experimentem também - e comentem, lógico!

domingo, 14 de junho de 2020

No meio dessa busca havia uma reviravolta

Ainda não tinha me localizado entre as mensagens da família e do trabalho, quando a Nina me procurou desesperada. Se caiu de pára quedas nesse bonde andando e não consegue sentar na janelinha e dar tchauzinho, Nina foi o pivô da briga entre eu e o Davi, no estilo melodramático rasgado "ou ela ou eu"! Ainda era cedo então demorei a entender, até porque a Nina também é meio tragicômica. Apesar do sono, nada soou minimamente engraçado depois de cinco minutos: o Davi tinha desaparecido e a Nina procurava alguma pista do paradeiro dele.
Meio bêbada de sono respondi no piloto automático que a ajudaria. Não que tivesse ideia por onde começar, mas como tinha discutido há pouco tempo com ele, estava com raiva o suficiente para levantar palpites de onde procurar. Desisti de me encontrar entre as mensagens dos conhecidos, chefes e colegas de trabalho e fui encontrá-la. Na entrada da estação a barraquinha de café da manhã caseiro me lembrou que continuava de estômago vazio. Preenchi a barriga com a média e pão torrado de sempre e fui atrás da Nina, porque ainda tinha uma viagem urbana pela frente.
De repente a empreitada de ajudar a "pseudo amante" dele a encontrá-lo me pareceu o tipo de bizarrice que só eu mesma para me meter. Mas era cedo o bastante para o cansaço ainda tomar conta de mim, então dormi e babei com sucesso até a plataforma da outra ponta da linha, onde nos encontraríamos. Fui me tocar que já estava no destino final com a gravação do condutor nos tocando do vagão para recolher o trem. Desembarquei e a Nina veio me encontrar. É bonita, Minha intuição não estava de todo errada de ter ciúme do Davi. Nós sorrimos amarelo e sentamos para entender se tínhamos ideia do que podia ter acontecido. Ele tinha sumido na véspera, ainda cedo. Pouco tempo depois do nosso bate boca. Tive dúvida se contava da briga porque já estava me perguntando se  ajudei sem querer no sumiço dele. Nina falou com nossas quase cunhadas, soube que ele tinha deixado documento, celular e moto lá, passou no trabalho dele, nem rastro do irresponsável, procurou ainda pelos amigos com os quais mais conversava nas redes sociais, nenhum tinha notícia. Estava grilada por causa da deprê dele, parece que os remédios também foram deixados para trás. Quando ouvi isso, muito dos rompantes e dificuldade absurda dele levantar da cama fizeram sentido. Porcaria: ela o conhece mais que eu?
Nina deve ter perguntando mais de uma vez por onde poderíamos caçá-lo, porque estive temporariamente no mundo da lua sem articular resposta. Encontrei um bloquinho de notas na minha bolsa, rascunhei e sugeri um roteiro para ela: hospital perto da casa dele, delegacia próxima ao trabalho, IML e bares que costumava ir.
- Quer incluir algo? - perguntei. Mas ela topou o roteiro proposto. - Se tivermos outras ideias nestas andanças, atualizamos por onde passar.
Sem carro, esse vai e vem levou muito mais tempo do que tomaria motorizada. Além das duplas conduções de um ponto a outro, pelo caminho fomos percebendo que era preciso ampliar um pouco as buscas. No hospital por exemplo, não havia dado entrada nenhum Davi neste meio tempo em que ele sumiu do mapa. Propuseram que víssemos no posto: vai que teve algo mais simples? Passamos lá também, mas apesar de ser na mesma região, como o transporte público periférico presta um desserviço nessas horas, demorou horrores até a etapa saúde pública ser ticada da lista. Nada de Davi internado, se examinando ou tomando medicação. Pista furada.
Entre os stress e preocupação, acabamos nos aproximando. Ela estudava algo que já flertei pesquisar: roteiro. Nina riu enquanto desabafei do trabalho. Aliás só lembrei de dar um sinal de vida quando já estava sem memória para mais mensagens no celular. Quando ela relaxava dava para entender o que ele via nela. Uma parte de mim se incomodava: não sei porque, já tinha dito ao Davi que não queria mais ver a sombra dele. Nos momentos em que Nina se preocupava esquecia o mal estar e tentava parir alguma ideia de onde podíamos ir ainda naquela terça cinzenta.
Fomos parar próximo de onde o desaparecido trabalhava. E por lá fizemos uma ronda caprichada: na delegacia foram estúpidos, mas também não levantaram pista alguma do sumido. Paramos para comer, pois já tinha passado da hora de forrar o estômago e estávamos meio sem saber o que pensar. Soube que ela mora onde vive minha avó. Comemos todas besteiras disponíveis na lanchonete, talvez por um nervoso inconfesso. Foi a vez da Nina falar do trabalho: faz revisões, também está cansada da precarização do mercado e tem frelas atrasados. Sorri amarelo. Parece uma moça que entrou de gaiata no navio tanto quanto eu. Contei dos parentes perto de onde ela mora, de como o trabalho não dá vontade de levantar e os sonhos de viajar. Dou risada de nervoso.
Embaçamos o quanto foi possível, mas fomos parar no IML. Os funcionários trataram com estranheza duas mulheres perguntando dum mesmo homem do tipo "curva de rio". Falta de imaginação desses legistas. Podemos ter ciúme, mas o embuste some e uma de nós sofre, vamos lá dar uma força e descobrir o que aconteceu. O que acontecerá depois... Bom, o futuro é misterioso, paciência! Por hora nos bastava não ter a mais vaga noção do que rolou com o Davi. Nada entre os arquivos e nem entre os presuntos. Podíamos sair ainda como não viúvas. Pensei em brincar para descontrair, mas percebendo que ela franzia a testa, desisti.
Já estava tarde e começava nossa saga boêmia atrás do Davi. Parecia roteiro de curta, mas não, a arte é que imita a vida. Ele bebia heim? Perdemos a conta dos balcões em que perguntamos por ele. Alguns garçons e frequentadores nos reconheceram de outras bebedeiras com ele. Estranharam também lógico. Deviam se perguntar quem entre nós duas era a sede e qual seria a filial. Porque depois de alguns botecos notamos os olhares mais inquisidores. Depois de muito pé sujo e mais sobrancelhas franzidas, Nina ouviu o celular tocando. Fiquei temporariamente com o coração na mão, porque depois de passar em tanto lugar questionando paradeiro dele... Vai que algum deles ligava e a notícia não era das melhores? A ligação pareceu durar uma eternidade. Nina ficou emburrada numa expressão que não conseguia compreender o que queria dizer. Finalmente desligou: tinha notícias, mas eram revoltantes. Sentamos no degrau de saída do boteco meio caído em que estávamos. A irmã procurou pra contar que Davi deu uma surtada, largou tudo pra trás e estava nos tios do interior. Nós desacreditamos que praticamente tínhamos batido perna atrás dele o tempo todo e o desaparecimento foi um piti que ele deu, mas esqueceu de nos avisar.
- Se a gente desse uma dessas...
- Era acusada de histérica.
- Inacreditável.
- Acho que ele foi pra lá depois da briga contigo.
- Será que isso mexeu tanto assim com ele? No dia não pareceu.
- Sabe como é homem: a gente contraria e eles piram.
- Foi patético, mas ao menos pude te conhecer.
- E o nervoso partilhado humanizou esse desencontro todo.
- Com ele sem celular nem temos como brigar com o cretino!
Um forró ao vivo atravessou nossa conversa, vindo do bar da frente. Não fazia parte da rota que o Davi frequentava e resolvemos beber por lá para esquecer do dia zicado que finalmente chegava ao fim. Avisei os que me procuravam mais insistentemente desde cedo e ainda se mantinham sem resposta. E não é que os músicos eram bons? Ela se empolgou na cerveja. Eu, que já não sou muito do chopp, fiquei na pinga com mel, que caía muito bem para um rastapé. Um frequentador mexeu com Nina, me meti no meio, batemos boca e adivinhe? Nos convidaram a cair fora. Ela me chamou para casa dela. Pelos meus cálculos e limitações do transporte público, seria mais fácil terminar estas andanças nela mesmo. Com a demora sem fim do ônibus a Nina conseguiu um táxi em aplicativo. Nisso eu já cantava, chorava e ria na calçada. Ela deve ter comemorado quando me colocou no carro, porque devia estar uma cena contraditória demais para continuar dando show na porta do bar que nos expulsou. Já na Nina, desabafei todo nervoso do dia, toda a raiva que fingi relativizar mais cedo e terminei num choro derradeiro. Ela trouxe um chá. No meio das lágrimas, fui beijada. Numa mistura de relaxamento, surpresa e celebração, ficamos juntas. Pusemos música, confessamos ciúme mútuo do Davi e decretamos que ele fosse à merda. Desencanamos de dormir e transamos em modo repeat pela casa toda.
No outro dia, o sol despertou nossa ressaca e atraso no meio do escritório dela. Ainda nos olhávamos como quem diz "que tiro foi esse"? Tomamos café no ritmo da nossa dor de cabeça. Ela foi me levar à estação e ainda nos atracamos na plataforma. Que Davi que nada! No vagão, escrevi pra meia dúzia de amigas porque essa foi a reviravolta com mais cara de série que já vivi. Fugi para o trabalho a fim de aterrar um pouco, produzir e prestar contas porque estava precisando mostrar serviço depois dos últimos furos. Esqueci tanto da vida por lá que comi atrás do computador e perdi noção da hora. Quando finalmente vazei pra casa... Encontrei com o Davi rodando a firma. Briguei tudo que tive vontade quando soubemos na véspera do quanto ele foi bundão. Depois de vomitar toda minha indignação, ele jogou todo charme que tinha em estoque e propôs que formássemos um trisal. Voltei à revolta anterior, mas antes que gritasse de novo, Davi explicou que foi sugestão da Nina também e pediu para ver as mensagens dela. Nesta altura do campeonato, o bate boca já estava ficando vexatório para rolar tão perto do trabalho. Fomos parar num café. Só o Davi mesmo para encontrar essas coisas ainda abertas, em dias e horários já ingratos. Encontrei não só a mesma proposta da Nina para virarmos um trio, quanto uma declaração que não devo ter ouvido nem dos meus ex maridos. Já estava estranhamente com pernas bambas quando ligamos para Nina. Por mais absurdo que pareça, a três rascunhamos verbalmente todos combinados para começarmos o trisal. Ainda não tínhamos vivido nada similar: tateávamos no escuro e descobríamos juntos. Davi topou esperar que nossa chateação com ele passasse pra nos engraçarmos em grande estilo. Estava como na música "pisando nesse chão devarinho" depois das mancadas que deu conosco. A voz e o rosto da Nina estavam ainda mais lindos do que na véspera mesmo com a internet dando pau. Depois que o Davi aceitou que consultaríamos uma a outra para verificar se qualquer saída ou ficada a dois não magoaria nenhuma de nós - afinal não pisar na bola não era o forte dele - não me contive: pedi um drink de café para comemorar. Os dois já queriam que fosse morar com eles. Ainda estava atordoada demais para responder. Mas a próxima curva perigosa e imprevista nesse roteiro seria obra minha.