terça-feira, 28 de junho de 2016

O primeiro ébano

É mesmo um outro cheiro... Tem um encanto não confesso ao pé do ouvido por uma amiga ou outra, porém cada uma descobrirá tateando às cegas seu alumbramento: revelou-se muito mais carinhoso que a fama anunciava. Sincera com previsão pelo zodíaco, já coloquei todas as encanações à mesa, como quem aposta as fichas no quanto é difícil ensaios amorosos terem continuidade comigo, depois de tanto tempo feliz em minha própria presença. Os medos se revelaram vãos. Estávamos ali para o que pudesse vir e não forçando presenças ou entregas fora de hora. Embora ele não acredite uma gota sequer na espiritualidade, aparentemente desta vez o universo conspirou a favor: não temos como dar muito mais do que estamos nos propondo. É um treino do gostar atípico, que poderia render dedos apontados, mas seguimos descobrindo encaixes possíveis em meio a tanto estudo, trabalho, amigos e familiares desconexos. A cada encontro, a ideia é só celebrarmos esta entrega momentânea que desconfiamos passageira, por isso mesmo colocamos a fugacidade "em cima da árvore" para sermos generosos e inteiros um com o outro. O antes ou depois deixaram de ter tanto peso e também "escorregaram para trás das cortinas", nos deixando inteiros para nos conhecer mais.
Poderia como em outras ocasiões esconder meus grilos, deixar julgamentos vir à tona ou me antecipar em preocupações com os olhares alheios. Mas a descoberta preenche todos estes antigos espaços  já exaustivamente explorados. Temos novos gostos, encaixes, descobertas, conexão de respirações... Que nos importa ontem ou amanhã? O agora é tão pulsante!
E nessa batida, joguinhos, grilos, medos não encontraram vez: os pedidos, divisão de percepções e curiosidade vieram à tona como os suspiros, mensagens e negociações tranquilas. Ninguém se cobra, temos noção real dos espaços a circular. O que o outro traz é acolhido e quase vira combustível pra mais troca, risos sinceros e descobertas imprevisíveis.
Como saberia que o primeiro ébano surgiria assim: com ambos abertos ao escambo possível e alertando das áreas de risco? Deixando para os reencontros só a troca gratificante e desmistificando o que pudesse pesar esse encanto temporário? Tão distante do que as amigas previam ou compartilhavam... Claro, o primeiro ébano delas deve ter sido ainda meninas, no erro e acerto desse gostar inicial. O meu, no auge dessa maturidade mútua: é o que posso dividir, até aqui que vou. E o outro acolhendo, com a disponibilidade possível naquele momento. A previsão é corações intactos, porém nossas peles nunca mais serão as mesmas.

O fim como convidado

Definitivamente não reparamos quando o fim se sentou entre nós. Foi para jantar, almoçar ou tomar café da manhã? Não saberíamos dizer, já que se revelou um convidado discreto, mas mesmo assim marcante: nossos planos em direções diagonais se tornaram expressivos, ainda que de algum modo já estivessem ensaiando aumentar esse espaço entre a gente. Claro que ele era importante, toda relação precisa de um respiro - afinal, quem aguenta viver com quem dorme na diagonal em cama de casal? Mas você saberia dizer quando os espaços saudáveis se tornaram abismos e não buscamos nenhuma aproximação? Penso que os amores são construídos de dilatações e reencontros, ainda que parte deles doloridos e inevitáveis...
Talvez em meio a tantas avaliações, o final se aconchegou entre nós. Ele fumava? Preferia café a suco? Experimentava comida natural? Preferia balada ou meditação? Não estranhamos a presença dele, assim como não o tratamos de modo personalizado para dizer mais sobre este hóspede quieto, que nos observava em algum canto de mesa ou ponta de poltrona. Você conseguiu perceber se ele se incomodou com a rotina? Abria a porta da geladeira? Jogava a roupa pela casa, no cesto ou já na máquina de lavar? Em que parte da dança mais solitária de nós dois não pudemos conferir a chegada dele, perguntar se vinha para ficar ou seria breve?
Enigmáticos estes visitantes misteriosos, que não se fazem perceber e ainda deixam no ar se vem para ficar ou serão fugazes. Você colocou um prato a mais na mesa? Nunca peguei outro copo para ele... A louça aumentou? A conta de energia se manteve? Ele disputava o programa a ser conectado e exibido na TV ou via o mesmo que assistíamos? Ficava à janela? Se sentava à cozinha? Como pode passar quase batido, se a casa nem é tão grande para visitas quase que se esconderem?
Não vislumbramos sua chegada, mas ele se aninhou entre nós quando a pipoca acabava entre um filme e outro. Num ou outro programa a sós, saídas com despedidas sorrateiras, relógios biológicos trocados, planos e preferências truncados. Quando os abraços e beijos para os amigos em comum tiveram as entregas terceirizadas, a delícia do reencontro mais rara e a saudade diluída entre um e outro chá compartilhado.
Onde estivemos com a cabeça que não pusemos o fim para fora? Pedimos que voltasse mais tarde, era ainda muito cedo, havia tanto a trocar, dividir, multiplicar ou somar, que ainda negociaríamos operação por operação?
Ah sim, não éramos tão lógicos assim. Não neste campo minado. Nem saberia dizer se quando um de nós partiu, o fim continuou rondando as refeições, a hora de dormir, o momento do banho e o trabalho meio pesado desde então. A casa está vazia, mas é como se parte de nós ou do convidado meio penetra se mantivesse: há tanto por apagar ou jogar para o limbo das recordações.
Pode voltar para levar o fim embora? Já esteve tempo demais desapercebido por aqui, talvez seja hora dele caminhar um pouco contigo e mudar um pouco a percepção do término. Quero por menos copos à mesa e ter a sensação que o baú de roupas diminuiu. O fim esteve entre nós durante algum tempo... Que estranheza termos desconsiderado este convidado.

Batida do Bicho Preguiça

- É só ler a agenda! - dizem os que nunca perdem um compromisso. "Sabe de nada, inocente" - penso baixinho, mas nesta altura do campeonato tenho canseira de explicar. Quem se aperta com médico, trabalho, estudos, amigos, namorado e família acha estranho que você não se "embanane" com tantos encontros pela frente.
Não que já não tenhamos adotado o hábito da agenda. Na falta dum cálculo interno melhor para tudo que é preciso deixar em dia, temos uma na bolsa, numa na mesa do escritório e outra no celular. A questão é que periodicamente uma encavala com a outra e surge uma nova questão: como forçar o hábito de bater uma com a outra e evitar que se atropelem?
Por exemplo: quando tinha um celular que dava conta do recado, a agenda dele apitava. Era a melhor solução para os perdidos: o atual só escreve o compromisso lá em cima e eu que tenha a presença de espírito de consultar, quando falha, tudo atravanca novamente.
Nós, os que não conseguimos lembrar de ver agendas temos alguma similaridade com os que não batem os olhos no relógio e chegam depois ou dão o cano duma vez. Deve ser alguma falta de gene e vislumbro que em breve as revistas SuperInteressante ou a Galileu estamparão na capa as descobertas dos furos na genética dos esquecidos, que calculam mal as horas ou não se regulam por elas.
Mas nós, os que não conseguimos ver as três agendas que tentamos adotar para combater a falta de um cálculo confiável entre um compromisso e o outro, em certa fase da vida começamos a chegar cedo demais. Passamos dos reis do atraso para a antecedência vexatória. Em certos casos, como na atual circunstância - contar histórias para os que moram em Casas de Repouso - não é possível anteceder a agenda desse modo, eles estão comendo, cortando o cabelo ou sei lá o que, não é viável mexer na agenda assim, aos 45 do segundo tempo.
Eu que me encontro na fase semi: semi nova, semi magra e semi bem sucedida, percebo que às vezes a genética é um fardo: meu pai tem essa relação dilatada com o planeta e é incapaz de ser rápido. Estou me saindo cuspida e escarrada ao progenitor, ao ponto do namorado há 1 ano e 7 meses apostar que nunca corro, nunca me viu fazer isso. Confesso que acho correr muito próximo de transar com gordo: quando acaba é que vem a festa da serotonina. Há meses atrás quase perdemos um voo e meu namorido ficou encantado de me ver correr pela primeira vez. Um voo inteiro esbaforida depois.
É o que prevejo para amigas mais jovens: depois dos 35 é só barranco abaixo: você pode até continuar estudando, trabalhando e frelando, mas dificilmente consegue espaço para esporte, trabalho voluntário... Começa a entender a família que "agarra ao colchão ou sofá" o final de semana inteiro, se indigna por estar igualzinha, mas também não desgruda deles.
Amigos escrevem no final de semana tentando levar a saraus do outro lado da cidade, mas a perspectiva que prevejo pelo celular é "o desafio deste sábado e domingo é sair da cama e fazer comida". Seria o frio? O excesso de frelas e estudos? A mudança do jornalismo para educação, onde não se cobre a violência, mas se passa por ela e a ampliação do cansaço e stress é previsível?
Não tenho ideia. Me solidarizo com os que acordam na hora do almoço e saio do slow motion só no meio da tarde.
Vai café?

segunda-feira, 13 de junho de 2016

De presença e gratidão

Ainda não sei se pela família cri cri ou pelo lado "jornalêra" super crítica, há anos e anos faço meditação, retiro, workshop, mas em alguns deles minha boicotadora profissional fica no meu pé de ouvido: "ai mas isso aí é Disney demais. Impossível. Só pra mestre ou bem nascido". Duns tempos pra cá, tenho seguido aulas, atividades e meditações duma coach sem dar ouvidos aos meus eternos pé atrás. Cismei que uma hora o conteúdo descia da cabeça ao coração. Mas achava que seria lá no evento que a escritora e criadora do Recalculando a Rota promoverá no segundo semestre. Semana passada tive uma surpresa: comecei o dia lendo um depoimento de como uma moça estuprada na infância se curou mantrando pro estuprador se curar também, na comunidade Sagrado Feminino. Então li que exoneraram o delegado machista que foi misógino com a adolescente estuprada no Rio. Minha amiga que ajuda com a limpa aqui em casa chegou contando que vendeu a casa que tentava comercializar há sete anos. Depois desse "berço energeticamente favorável", digamos assim, fui ao médico. Sabe o mesmo caminhozinho de sempre até o ônibus? Pois comecei a achar tão maravilhosa as árvores do conjunto em que moro (mãe conta que participei do mutirão de plantio, mas não lembro), a passarinhada que às vezes me enlouquece em noites de insônia, o barulho dos carros, o fiapo de sol no frio... Dava aquela vontade boa de chorar, até o ônibus que no geral dá uma baita canseira estava incrível. Foi um teco de manhã maravilhada, Claro que à tarde a alergista não atender nenhum convênio que tenho e a família cutucar minha gastrite não colaboraram pra manter a presença e a gratidão. Mas antes só tinha rolado em retiro, em meio a comida, paisagem, práticas e colegas favoráveis. Mais pra noite fui mantrando antes de chegar à escola, pois já tinha me chateado com a overdose de crítica familiar. Rodei a baiana lá que não faria bandeirinhas. Mas consegui o milagre da maior parte dos alunos fazerem dinâmicas teatrais, se desenharem, escreverem como sentiam, uma estudante aborrecida com minha ironia agradecer no contorno do corpo do colega, falar um pouco da África, já que farão trabalho disso na reposição de aulas, cortar gracinha de aluno abusadinho e responder virada no Jiraia pra quem acha que só aluno que trabalha sofre. No fim, preferiram a aula cênica às bandeiras juninas mesmo. Noutras ocasiões senti esta presença e gratidão por segundos ou minutos, mas como era em meio às aulas de yoga, meditação, que sempre acabava na selva corporativa, quis agarrar o momento e o apego fez tudo terminar rápido. Creio que vem muito pela frente, pois é como se derrubasse resistências sem lutar ferozmente contra elas. Mas ainda desconfio que pra quem não vivenciou, as palavras ainda soam infantis demais, boas demais pra ser verdade. Que mais e mais seres acessem isso e nós liberemos a divina providência pra atuar em zonas de risco e com pessoas vulneráveis. Evoé!

Povos originários argentinos provocam valorização dos índios brasileiros

O projeto Oralidad Escrita, na Argentina, me levou de volta à aula do uso do conto como ferramenta pedagógica do griô Toumani Koyaté no Centro de Formação Sesc, em São Paulo. Este professor-contador-fotógrafo-escritor africano respondeu quando questionaram como visitar Burkina Faso:
- Vocês às vezes não estão preparados nem para o Brasil e querem ir para a África?
Se nosso país já tem dimensões continentais e um mundo de cidade a cidade, dum estado para o outro, imagine o continente mãe!
E como a história Anastácia prevê, viajamos para longe, para encontrar a felicidade do lado de casa.
Eu, o namorado e parceiros do coletivo Aty Saso fomos contar histórias e promover um concurso literário para registro da sabedoria indígena lá em Formosa, no norte da Argentina. Sim, tem um tempo razóavel, mas parece que levei uma temporada significativa para decantar tudo que trouxemos de lá. 
Escolhi o conto Canto de la Lluvia, de Gana, garimpado no livro Volta ao Mundo em 80 Histórias, para convidar as escolas bilíngues indígenas a enviar seus contos para o concurso que publicará os que mais refletem os povos Qom, Pilagá, Toba e Wichi, mas claro que a ideia era saber mais dos outros povos originários também.
Acho que ao propor um projeto de intercâmbio cultural não imaginamos ao certo o que aprenderemos, nem o que daremos neste escambo tão imprevisível e rico. Mas vivenciei um pouco quando o pai de um estudante indígena contou uma história em que o arco íris era um fantasma e uma professora entendeu porque os alunos corriam do que elas achavam bonito. Noutras escolas quiseram nos ouvir em português. E na tradução do conto, fico sabendo que nosso quilombo, símbolo de resistência contra a escravidão, lá é brincadeira. Uma diretora e professores nos deram conto indígena impresso. O chimarrão é tão bebido por lá quanto no Rio Grande do Sul. Os repórteres quiseram saber da crise política daqui. Não sei se as TVs permitirão que minha crítica contra a direita brasileira vá ao ar, mas de certa forma "lavei a alma". Achei curioso que tão distante da época de Peron, muitos se definam como peronistas e me parece que foi um período em que se ganhou tantos direitos trabalhistas/ sociais quanto na Era Vargas. As professoras dessas escolas bilíngues argentinas são funcionárias do governo. Parece que as de São Paulo são de ONG, terceirizadas e somos uma cidade educadora! Não sei onde estaríamos se fôssemos tão politizados quanto os "hermanos"... E é curioso porque até encontro brasileiros com bronca de argentino (assim como há rixa entre paulistas e cariosas, gaúchos e catarinenses), mas parte significativa deles tem interesse genuíno pelo que rola aqui. Ganhamos mostras do artesanato indígena de lá e guias de direitos dos indígenas nos idiomas deles e espanhol, ilustrados com a Mafalda. Sinceramente, não sei se há atenção similar ao nossos povos originários. Mas o que os preconceituosos dizem deles lá e aqui segue a mesma linha enviesada de raciocínio: que são preguiçosos e não gostam de trabalhar. 
Tive curiosidade de conhecer o interior de Formosa, que parece ter o 3o maior Pantanal da América Latina, como quando saí de Aracaju querendo visitar o sertão próximo do São Francisco. Mas é impossível comer vegetarianamente por lá. Houve uma curiosidade e reuniões com secretaria de turismo e órgãos oficiais de lá. Não sei se argentinos aqui num projeto no que resta do Xingu provocariam esse interesse. Sei que soa colonialismo da minha parte essa visão, mas o que os "hermanos" tem a favor deles há que se reconhecer.
Para meu livro, que tem um personagem indígena, conheci um pouco mais desses povos no contexto urbano mesmo. Na feira indígena que participei em São Caetano saí com namorado a fim de conhecer uma tribo (eu já tinha). Mas o quanto cuidamos, os estudamos sem olhar colonizado? O papel dos professores têm se complexificado conforme o conservadorismo avança. Porém essa ampliação de direita ou centro meio nazistas é mundial, segundo feministas antigas e que acompanham o movimento internacionalmente. A luz no fim do túnel é que meus estudantes adoraram saber mais sobre a cultura indígena, tanto daqui quanto de lá.

Crime bárbaro carioca estimula debate em sala

Como feminista, ainda que da fase analógica, o estupro coletivo me mexeu horrores. E arte educadora que sou, passei dias lá matutando como levar isso à sala de aula. Lá no interior do ABC onde ensino ainda não começaram as censuras aos professores, nem nada, mas sabe-se lá, já estou treinando "bancar a artista da época da ditadura". Acho sim, que o professor cria sua aula e é lógico, configura-se outro artista, ainda que num palco informal. No mínimo atualiza o material já criado né não? Tinha uma pesquisa anterior sobre Plínio Marcos, cujo debate rendeu um bom caldo ano passado, quando comemorou-se 80 anos do nascimento desse santista "da pá virada". Revisitei o que já tinha levantado. Sempre que faço isso cismo que ele que começou a vender poesia em fila de cinema e teatro. Pedi às amigas que já tinham feito montagem dele trechos das peças do "dramaturgo maldito". Acabei usando um pedacinho de Abajur Lilás, na qual uma prostituta era morta por quebrar um abajur. Disso ia pra uma conversa sobre banalização da violência, então mencionava mortes por dívidas de valor baixo em bocas de fumo e por fim, estupro coletivo por possível traição no Rio. É como já ouvi outros professores em encontros de partilha da rede: "ou os alunos já não concordam com barbaridades ou sabem que é condenável e não admitem em voz alta". Penso que estamos nessa fase lá na minha escola, porque na conversa anterior sobre como as artes combatem a violência doméstica ainda teve aluno dizendo que é um absurdo investir num relacionamento e a mulher te deixar por outro. Uma estudante mais velha mencionou vários cunhados que passaram por isso sem ignorância nenhuma. Adoro quando eles mesmos polemizam e a gente só media. Outro educando (sei, a palavrinha é horrível) contou ter visto uma surra numa boca voltando pra casa, teve dó, mas não se chama polícia nestas regiões ( pode-se sofrer retaliação de traficante). Por conta deste episódio ouvi mais barbaridade em sala de professor do que em classe. Pois bem, a dica final é: foi conversado tudo isso, mas não se mencionou a palavra gênero. #ficaadica professores!

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Rebelião da Pururuca

Ter memória familiar com hospital já comprova a definição da avó paterna: somos loucos mansos. Tá, dirão vocês mas e o lado materno? Meus pais são primos. Há cinco gerações só casam entre primos. Game over. "Positivo, câmbio" mas e a revolta do estranho nome deste post? "Pois bem caro Watson", vamos aos fatos. Há uma semana e meia meu pai teve sua estreia hospitalar. Depois de um mês com dor no peito e braço e sendo hipertenso, descambou pro Beneficência Portuguesa. E é lá que tenho memórias familiares surreais: de passar uma virada de ano de jejum por uma apendicite mal diagnosticada, estourada e pedir às enfermeiras: "soro sabor champanhe por favor". De visitar meu tio que na troca de remédio anti Parkinson tem efeitos colaterais e num desses efeitos colaterais me chamou. Ele sempre dizia que queria ter Alzeimer e não Parkinson: "melhor esquecer que tinha tomado cerveja do que derrubá-la"... Ver outra tia tratando doença auto imune. Como ela é bióloga, já viu que tratamos os sintomas e não as causas. Soube de uma mulher foi tratar a causa na Índia, começou mal, mas se curou. Até tinha como a tia atravessar o planeta e se tratar lá, mas ela preferia ficar oito horas seguidas recebendo medicação na veia... Deus dá asa pra quem não voa. Minha família é meio Legião "festa estranha com gente esquisita". Ok, de novo como dizia uma parceira corporativa "de volta à vaca fria": há uma semana e meia minha mãe ligou que estava levando meu pai ao hospital: às três da madruga... Voltei à cama e dormi. Acho que até expliquei pro namorado. Meu pai soube da morte do meu avô em circunstância semelhante e também voltou a roncar, duas ou quatro da manhã. Está bem, não faço mais avaliação familiar. Fui visitá-lo uns dias depois pois fui incumbida de cuidar do nosso cachorrinho Bidu nesse meio termo. Já tinham me dito que ele se alimentava bem, mas como a bandeja tinha acabado de ser retirada numa de minhas chegadas, puxei papo aqueles papos besta de internação:
- O que você jantou?
- Uma comida terrível (não bastasse ser sem sal, não usam uma especiaria sequer).
- Pai vim te ajudar a organizar um motim contra a falta de pururuca nas refeições hospitalares. - e ria. Alto. Ele tentou me conter várias vezes sem sucesso. Como diz um amigo, "derrubo as pessoas da janela com minha risada". Brinquei uns poucos dias até me dar licença de chorar. Não somos italianos, mas podíamos dar workshop de como ser "sanguíneo". Se bem que... Quem ia querer aprender ser assim? Ele foi sindicalista, aprendi militância quase como os músicos auto didatas "de ouvido". O ariano é mesmo um bebê chorão, já dizia meu namorido. Lembrei do Mário Prata em seu livro no SPA, onde traficavam leite condensado dentro de tubo de pasta de dente. Quando meu pai reclamou da falta de sol na hora associei à prisão e disse:
- A moeda aqui pode ser o sal, como na cadeia é o cigarro.
Cateterismo, angioplastia, plasticazinha no braço cheio de bolha de reação do exame depois, volto ainda nessa missão de fazer o emburradinho por convicção dar uma risadinha:
- E aí pai pela ampliação do sal vamos fazer um piquete, operação tartaruga ou... - ele foi do metrô. Sugeriu:
- Fechar a Paulista.
Imaginei no meio do avenidao mais famoso da cidade um mar de internados de aventais e camisolões, improvisando bandeiras em fronhas com carimbos hospitalares e ateando fogo aos colchões do Beneficência, montando barricadas:
- 2 gramas de sal é roubo!
- Ou aumentam o sal ou a UTI arrebenta!
Foi quando o médico passou:
- O senhor pode voltar... marca passo... batimento devagar...
Estranhei. Pensei que estavam editando o que me contavam como não disseram ao pai que a avó da prima tinha morrido. O cara saiu pra assinar papelada e questionei:
- Você fez marca passo?
- Não ele nem falou isso (já desconfiava que meus pais estava senhorzinho, agora tenho certeza. Ou ele ouviu só a parte da alta e não escutou mais nada).
Tentamos ver com o médico no balcão nossas dúvidas, mas "eles preferem terminar com a enfermaria, depois falar conosco no quarto". É que estão no panteão dos deuses mesmo.
Ah, o panteão médico dos deuses...
Depois o atrapalhado admitiu que fez confusão... E pouco antes de virmos embora, vi uma leva de médico novo no corredor, brincava com meu pai:
- Como diria minha diretora cênica "olha a cara de quem comeu muita proteína na infância". Somos invisíveis, veja um ou outro nos cumprimenta.
Sim, seu Benedonca voltou. Conversei com amigos que como eu estão com pais mais velhos que "só fazem ou falam o que querem" e todos achamos que devíamos por em castigo ou dar uns petelecos como fizeram conosco. Chegou a famigerada temporada "sou só eu e Deus". Só por Buda. Evoe!