segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Festa da Firma

Quando penduraram o aviso da festinha anual de confraternização, a maior parte do departamento torceu o nariz.
O (forçado) amigo secreto corporativo já obriga cortar do orçamento o presente do afilhado e pra presentar justo quem nem mexe o nariz quando é cumprimentado cedo na salinha do café.
Mas as firmas seguem forçando amizade com estes deboches institucionalizados da equipe.
Este ano, a equipe revolveu não só enfiar o pé na jaca, mas mergulhar de cabeça.
Todo fim de ano é a mesma lenga lenga.
Liberam a bebida no último dia de expediente.
Quando as pessoas estão pra lá de Bagdá o chefe que mal passa ali para assinar os cheques resolve fazer um "discursinho".
O que eles chamam de "família" mal se aguenta em pé e o "dono do barraco" resolve fazer uma ode ao neoliberalismo.
O sindicalista disfarçado desta vez também resolve não deixar barato.
- Então este ano conseguimos implantar o 14o e participação de lucros?
Acho que liberaram a bebida um pouco cedo demais.
- Veja bem...
Os salgadinhos cala a boca começam a circular.
O aspirante a sindicalista quer subir no palanque que sua imaginação improvisou.
Mas o espaço nem tem um. Os camaradas do "deixa disso" o apartam.
O aspirante a gerente que ria sozinho de suas piadinhas machistas se empolga quando soltam uma música abafa rumores de "injustiça" e dá um tapão na bunda da funcionária em quem passou o ano despejando um assédio moral não muito sutil.
Ela que também já estava com os "ovários cheios" daquela opressão do patriarcado corporativo, joga cerveja nele.
Talvez a bebida foi generosa demais, lamenta o povo do RH.
O artista infiltrado como operário de escritório se empolga quando começa a tocar Sidney Magal, afinal era a trilha do primeiro filme que ele conseguiu um papel com fala, filmando de madrugada, sobe numa mesa e começa a interpretar um go go boy.
Os senhores que desejavam uma aposentadora a salvo de vexames, também tentam conter as mulheres enfiando doações na cueca dele.
Definitivamente, a bebida saiu cedo e em doses generosas demais, a gerência concluiu. E resolve beber também.
A "piãozada" do chão de escritório resolve virar o jogo em plena confraternização e toma o poder do buffet: força a diretoria a servir até alta madrugada, aos gritos de:
- Vocês nunca mais encontrarão parceiros de trabalho dispostos assim! É bom agradar ou começarão o ano tendo que passar café e tirar o lixo do banheiro! Sejam simpáticos ou mandaremos vocês pro xérox ano que vem!
Alguns colaboradores tentam fugir pelas janelas.
É quando chega a mulher barraqueira do encarregado da expedição. Soltando os cachorros logo de cara:
- Como se não bastasse segurar meu marido o ano todo, em pleno de fim de ano que preciso de ajuda pra liberar os pratos que faço pras ceias dos clientes preguiçosos, ele faz hora extra em plena festa da firma e ainda dança com essa sirigaita que passa o ano de gracinha com ele? Isso não ficará assim!
O estopim da ciumeira parece ter sido a Suzinete, da... recepção ou secretaria? Os acontecimentos também foram processados por outro bebum corporativo. Não há indícios de que haveria de fato um caso, porém para ciumenta, feita fora do eixo já é motivo suficiente para rodar a baiana.
Parece que a esta altura do campeonato voaram copos, as pessoas se esconderam atrás do balcão de doces, o moço do som deu no pé, mas largou a caixa lambuzada de cerveja para trás (difícil ele carregar tudo naquela guerra e ainda por cima, escorregando Itaipava).
É quando interfere a filha do encarregado do arquivo morto:
- Vocês nunca foram crianças e nem fizeram desperdício de guerra de brigadeiros em buffet infantil?
As famílias começavam a resgatar seus membros, já que os escritórios vizinhos denunciaram o barraco corporativo na Internet.
Justamente pela bebida ter sido distribuída ligeiramente cedo, os colaboradores começaram ressaca moral de uma criança puxar a orelha deles no auge do rebolado do ator operário.
Foram saindo de cabeças baixas, com mulheres ou filhos perguntando pelo 13o atrasado e se ele tinha sido "investido" nesse mico de festa da firma.
Para deixar a poeira abaixar, um zap anônimo deu férias coletivas à "família da firma" por uns 15 dias.
Bem que o pessoal mais visionário do RH avisou que essa história de chamar os colaboradores de família ainda ia acabar mal.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Caverna do Conselho de Dragão dos Ciclos

A Liga da Justiça Pedagógica é convocada para se embrenhar na Caverna do Dragão do Conselho de Ciclo. Alguns levam mantimentos, outros bebidas, mas corajosos que são, deixam as armas de lado. No máximo podem dar com o diário um no outro, em caso de divergência. Mas nunca chegaram ao desespero de causa de recorrer a objetos perigosamente pontiagudos como lápis, tesoura ou caneta, jamais! Despedem-se de amigos e familiares. O momento é tenso. Há comoção entre colegas e parentes, nunca se sabe quanto a jornada pode durar.
Tudo vai bem entre avaliação de um aluno turista aqui ou outro "estupidamente inteligente" lá, até que empacam nestes que um reclama que não lê, a outra argumenta que é criativa, o terceiro chia que não faz contas e o quarto emenda assegurando que se sai bem nos debates. O circo está armado: as discussões são inflamadas e prometem não ter fim. Os educadores fazem involuntariamente estágio em psicopedagogia: todo o trágico histórico de vida destes estudantes é trazido à tona. Lágrimas. Alguns pedem para sair da sala, é demais: abusos, crimes familiares, moradores de rua, violência doméstica... Soluços. Quando os mais afetados pedem suspensão das discussões para lavar o rosto ou reabastecer com café, são invariavelmente presos na Caverna e apesar de não estarem em nenhum pôquer infindável, escutam:
- Ninguém sai! Ninguém sai! Ninguém sai!
A mais insone dos professores argumenta que sem café já é insalubridade demais. Tem pouca adesão. Vários professores já estão sem forças para argumentação. A que sofre de insônia começa a ter abstinência de cafeína. Como os dramas escolares foram muito pesados para uma discussão inicial, a coordenadora e o diretor prometem ir para uma sala mais leve. Educadores suspiram. De fato passam por vários casos em que os conceitos são mais consensuais, até que chegam noutro polêmico:
- Não junta lé com cré!
- Pinta tão bem - o professor de artes sempre "causa", enquanto diversos reclamam, ela vê que é criativos, interativo ou imaginativo. Vários se seguram para não esganá-lo.
- A tabuada do dois ou três ele tem que emprestar dedo do vizinho para calcular os resultados.
Neste aluno são gastos dias e dias de debates. Os alunos que tinham se pré disposto a acompanhar as avaliações, pedem arrego:
- Minha família está me procurando no IML!
- Ninguém sai! Ninguém sai! Ninguém sai!
Um secretário começa a rezar. Os sociólogo e a filósofa protestam:
- O estado é laico!
- Vão ocupar aqui também? - a coordenadora teme o histórico militante deles.
Desta vez é o diretor quem resolve o impasse e passa, pois a vida dele não era simples: trabalha longe, madruga, tem três filhos, mora num barraco, a mulher fugiu com vizinho, deixou dívida no bar, a filha não sai da boca...
Comoção. Educadores se consolam e deixam aluno passar. É demais para uma vida tão jovem, como poderia pensar em estudos? Pobrezinho! Pensando bem, rendia até demais com esse contexto do entorno do pobre coitado...
A reza do secretário rende. Passam por vários estudantes sem precisar sacar as armas dos diários ou os super poderes dos trabalhos e provas. Infelizmente, a sala mais simples termina e a coordenadora diz que não pode fazer nada, mas precisam avaliar a 7a série mais "encardida". Os educadores encarariam o dragão de Komodo, mas fogem desta  turma.
O primeiro aluno já provoca um impasse:
- Analfabeto funcional não pode passar!
- Aí já é esculhambação!
- Ele joga tão bem - quando o professor de arte não empaca a discussão, é a da educação física quem trava tudo.
Debates se arrastam por semanas. Filhos ligam. Maridos e mulheres fazem panelaço na porta do colégio. Educadores são dados como desaparecidos, mas seguem escutando da gestão:
- Ninguém sai! Ninguém sai!
Professores sabem que sua casa foi perdida em chamas. Os sinais dos celulares foram cortados. Amigos íntimos falecem de preocupação com o sumiço dos professores. Educadores reclamam que parentes foram dar parte na delegacia por cárcere privado.
- Ninguém sai! Ninguém sai! Ninguém sai!
Há professores com olheiras. Os mantimentos acabam, Educadores começam a comer os diários. Aí já  foi calamidade pública. Coordenadora e diretor agilizam os casos mais complicados. Um bairro inteiro com mães solteiras, ex detentos, pais que viram os filhos serem mortos, estudantes que fogem de casa e se abrigam no colégio.... Melhor não provocar um problema a mais na vida destas vítimas de outras vítimas.
Chegam a um acordo de solicitar reposições quando as bebidas terminam e educadores ameaçam beber o branquinho corretor de rasuras. Os impasses mais polêmicos terão que fazer trabalhos sobre sustentabilidade, cultura afro, indígena ou gênero, estes temas que precisam transpassar todas matérias. Um professor se acorrenta ao bebedouro como protesto pela demora na escola de encerrar o Conselho. Estes assuntos são sorteados rapidamente entre as turmas. Um sociólogo sugere emendar numa ocupação na escola contra... Professores tentam linchá-lo e a turma do deixa disso socorre.
Quando os portões do colégio se abrem e os educadores saem da Caverna do Dragão são recebidos com comemorações emocionadas. A imprensa local foi cobrir quando saíram do cativeiro, ops...! Quando encerraram a missão na Caverna. Alunos que acompanharam dão depoimentos emocionados à polícia:
- Foi horrível! Pensamos que não veríamos nunca mais a luz do dia fora das salas de aula...
A paz volta à quebrada em que o Conselho finaliza.
Ao menos até o outro bimestre.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Terapia inesperada e lúdica

A futura paciente chega ao consultório onde fará terapia. Não encontra secretária, senta e confere as revistas expostas para leitura. Considera um milagre não serem "do período jurássico". Geralmente são tão antigas que nem se anima a conferir. Sem alguém para informar se atrasou ou não, o que a recebe assim que pisa na ante sala do consultório é o rádio. E ele está muito bem sintonizado: Gilberto Gil. Nem precisou muito e já começou a cantar. Quantos shows dele já tinha visto? Conferiria muitos mais, é o tipo do cantor que nunca provoca exaustão. Mesmo sem recepção humana, o local é bem acolhedor, tem paredes verde claras - chega a pensar que devem provocar algum efeito sugerido pela cromoterapia, porém não estudou o tema a fundo. Os enfeites são simpáticos. Agora a estação vai para um samba. Rodas com amigos, clima de entrosamento, memórias partilhadas em mesas de bar simples vêm à memória em questão de minutos. Para ela, sempre que estivesse down, escutando este ritmo já ficaria tão bem que nem era preciso incluir tratamento algum a mais. Tinha esquecido isso. Bem, com aquela sala sem ninguém conferindo agenda ou avisando que havia chegado, começou a dançar. Foi instintivo. Se divertiu mais quando achou um espelho. Nisso a emissora pôs no ar um forró. Soltou-se ainda mais! Perdeu até a curiosidade com as publicações para leitura. Quem a julgaria naquela espera pelo tratamento sem intermediações? Lembrou de amigos, noites animadas, risadas na madrugada e shows inesquecíveis. Começou na sequência um reggae. Perfeito para o fôlego "semi sedentário" (às vezes conseguia fazer exercício, noutras não). Apresentações que conferiu adolescente, maratonas regueiras, companhias divertidas, tudo foi voltando à tona e emocionando sem esperar. A cabeça resolveu fazer mini flash backs que a tocava, a cada nova música... Tinha um aspecto que a divertia no espelho. Nisso começaram a surgir pessoas de outras salas no corredor do andar, esqueceu que a porta ficava aberta com um peso. Seu acompanhamento corporal espontâneo à seleção musical devia estar chamando a atenção. Nesta altura do campeonato já se sentia tão animada, que nem se importava mais. O cabelo suado, pulava junto com ela. A bolsa já havia caído no sofá. Água? Podia tomar ao fim desse entrosamento inesperado com o rádio. Consultórios próximos estranhando? Nenhum colaborava com suas contas. A despeito do cansaço, cantava, dançava, lembrava até que...
- Vamos lá? - chamou a terapeuta, abrindo a porta de repente.
- Não preciso mais, obrigada!
- Mas seu horário é agora!
- Sua rádio já me ajudou muito!
- Hoje faria avaliação em conjunto das suas questões...
- Parabéns pelo bom gosto doutora.
E a ex paciente começa partir cantando todas misturadas depois de o que...? Quinze muitos ou menos de euforia musical nostálgica. A emenda saiu melhor que o soneto: o convênio seria "tão paduro" na cobertura das sessões, na melhor das hipóteses só introduziria os dramas à terapeuta e já precisaria sustar as consultas e ficar com tudo no vácuo, pois costuma levar um "tempozinho" pro paciente e a terapeuta se entrosarem...
- Doutora? - pouco antes de partir resolveu tirar a dúvida derradeira.
- Pois não - ela respondia, ainda estranhando muito a reação da paciente perdida.
- Que estação fica sintonizada na sala de espera?