domingo, 16 de abril de 2017

Feminino Abjeto em Trânsito

Depois do ensaio minha parceira cismou que era perigoso ir com a amiga dela ao ponto de ônibus e chamou um Uber. Calculamos antes de nos despedirmos: não davam nem 10 minutos e nem 10 reais até a estação de trem mais próxima. Mas já tinha sido assaltada por travesti na região e concordamos que era a melhor saída pro trabalho ter acabado tarde, minha bateria, como sempre ter terminado muito antes da hora extra artística de fim de semana e ter esquecido o carregador em casa. Nos despedimos sempre naquela batida "me avisa quando chegar". Outra companheira da antiga profissão sempre remete ao coração meio angustiado que anota a placa do táxi antes de dar tchau à amiga e só se aquieta com a confirmação de chegada da companheira. Porque pras mulheres é assim amigos hômis: trocar um risco por outro. Ou você nunca leu/ ouviu sobre abusos e inclusive estupros por taxistas e companheiros de crime destes profissionais meio assustadores? Não são nem dez minutos, mantrávamos eu no Uber e minha amiga na casa dela. Pra depois meu infindável troca troca de três conduções nas baldeações. Mas a primeira vez que o carro passou pela estação, estava na pista do meio da Marginal, a que não tinha como parar e eu correr atravessando a pista ao lado que me permitiria embarcar.
- O Waze está indicando errado o caminho. - ele justificou.
Certo. E porque raios você o segue novamente? Quis dizer, mas como as personagens do livro Uma, Duas, da Eliane Brum, as palavras travaram em mim. O aplicativo recalculava a rota, mas era como se a volta no quarteirão desse vários perdidos na minha pressa e vários pontos a favor da malandragem do motorista.
Onde estão os outros passageiros do Uber Pool solicitado pela minha amiga? Também tentei perguntar, mas a interrogação entalou no meu céu da boca.
Juro que entrei semi simpática, com aquela conversinha inicial aparentemente sem riscos, como quem quer sinalizar "acredite que não tenho medo e nem sou presa fácil, Estou em missão de paz".
Mas foram os retornos sem fim nos levar a avenidas sem saída, viadutos contra mão e de novo à pista do meio da Marginal - que mais uma vez não me permitia entrar na estação Berrini - e toda minha falastronice derreteu tapete abaixo, as conversinhas pra boi dormir fugiram pelo vidro entre aberto do banco de trás.
Ele é de outro estado, não tem ideia de como irmos onde preciso ou vai me levar pra outra quebrada que não a solicitada no aplicativo? Comi todas as unhas dos dedos na tentativa de dar outro andamento ao meu nervoso que não fosse a gastrite, nem a insônia de logo menos.
Se ele me levar pruma bocada, como pedirei socorro depois se estou sem bateria?
E eu que sempre passei mal só de apurar manchete policial pra jornal impresso em plantão no jornalismo só desejava que não virasse personagem de nenhuma baixaria de Datena. Minha família não merece nos reconhecer entre em nenhuma desova de corpos e muito menos ouvir "mas estava na rua àquela hora"?
Me sentia como minha mãe costuma reclamar, que na hora do nervoso não conseguia rezar.
Já até tinha trabalhado no Brooklin, mas é uma região reconhecível de dia, com todo o movimento do expediente comercial, só que à noite e no fim de semana aquele bairro não parecia só difícil de lembrar os caminhos já trilhados a pé, mas também assustadora. 2123941943 prédios e espaços comerciais e nenhuma alma na rua.
O motorista rodou taaaanto que uma hora perguntei, vendo umas poucas pessoas na rua:
- Veja se eles indicam onde está a estação porque o Waze definitivamente não está ajudando.
Torcendo pra que não fosse o caso dele emputecer ou piorar meu medo de todas barbaridades que lembramos nestas longas horas aflitivas.
Ele perguntou, mas ouvia de novo o Waze e rodava. Não me lembrava de várias ruas propostas pelo aplicativo e já fiz mais de um trabalho na "vila cloaca" daquele buraco do Brooklin.
"Essa porta está travada como as de criança? Como saber? Pulo? Quais as chances de me quebrar? E e de escapar"? Cogitava sem ideia se era uma possibilidade ou o medo já tinha evoluído pra pânico e de repente eu cismava que podia improvisar um episódio de série de suspense. Ou terror.
Tenho pouco tempo pra trocar e trocar e trocar de estação, caramba! Minha mente gritava, mas meu cagaço de que fosse mesmo a noite de esperar pelo pior só me permitia roer as unhas. Porque ser mulher tem isso meninos: conferir tanto as estatísticas de violência contra a gente e criar sem querer uma bomba relógio interna que "de vez em sempre" apita: "já é minha vez  de passar por isso? Mas não fiz análise o suficiente".
Oi Liga da Justiça Divina. Sei que sou uma cria rebelde e capaz de xingar inclusive no meio de uma oração como nesta manhã. Mas me livra de mais essa por favor, pode ser via Oxum, Chico Xavier, Buda, Sarasvati, Deus, quem tiver desocupado, estou aceitando. Só faltei terminar com valeu, falou. Aquilo não era uma reza. Algum deles atenderia? Temia que acontecesse o que meus amigos dizem que rola meus pedidos pra todos os santos possíves, ninguém podia me atender, porque um esperava que o outro me desse cobertura e podia terminar o dia no vácuo de novo.
Olhava os pontos de ônibus, quase pedia pra ficar neles mesmo, porque a corrida não tinha fim, mas não tinha passageiro esperando. Até que ponto isso era mais arriscado?
- Não, não começa a sair do prumo de novo. - não aguentei - É pra lá, pela Marginal. O aplicativo já errou e já errou de novo.
Sei lá o que se passou pela cabeça dele, mas entrou numa contramão e eu desci:
- Você não pode virar aqui.
Entrei no trem de perna bamba. Sem bateria, nem carregador para avisar família e amigos, fui chegar em casa uma hora pra lá do previsto e já estavam todos criando as piores teorias e se mobilizando pra pensarem juntos em como me encontrar porque o aplicativo já indicava algo de errado. Passeio pelo trem e pelos metrôs ainda fora do chão com a sensação de "salva pelo gongo". Voltei a ler o livro da história mal digerida entre mãe e filha comentada acima só no ônibus que foi me incomodando até o outro lado da cidade, em casa, onde cheguei com gente muito querida em polvorosa atrás de mim. Fui chorar meu nervoso só no dia seguinte, porque temos costume de por nosso mal estar na árvore pra consolar quem amamos.
Não é odioso ser mulher logo de cara. Mas a sociedade, o sistema e o patriarcado tornam nossa vivência assustadora e isso nos exaure emocionalmente. Tudo o que queria é "me esconder na cama que é porto seguro e acolhedor". E recarregar as baterias para as próximas guerras.