quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Doula de alunos melhores

Dar aulas é como parir a professora dos nossos sonhos de tempos em tempos - em intervalos que não podemos prever. Isso se nos abrirmos à colaboração dos estudantes, se permitirmos que cursos, as histórias ou vivências realmente nos afetem. A ponto de abrir mão da aula planejada milimetricamente pros alunos também criarem. Pagar pra vê-los nos provar que a arte pode estimular o acesso criativo ao inconsciente coletivo. É permitir que oficinas de iniciação artística dadas para crianças me atravessem e "reiventem" minhas aulas no ensino formal para jovens e adultos.
Para ser ligeiramente didática, tive uma uma diretora teatral que sentíamos como "parteira de cena" quando travávamos em improvisos coletivos. Me miro muito nela: minha meta é ser parteira de estudantes melhores. Sejam arteiros ou profissionais lógicos. E tenho visto estudante do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) se apropriar do material meio de lado na escola formal em Santo André, se pintar, usar figurino e sair fazendo malabares depois duma narração dramatizada minha. E daí que ele não emprestou os livros que recomendei? O melhor que tinha para se resignificar naquela noite nos limites de sempre da educação pública foi um artista de rua no corredor do colégio. E foi tocante fazer parte daquilo de alguma maneira.
Com as crianças no Programa de Iniciação Artística (Piá) de São Paulo já entramos num ritmo "tudo ao mesmo tempo aqui e agora": levo ideias, o parceiro de música também, mas os participantes... Eles nos ensinam jogos, abraçam os que propomos, usam meus acessórios de cena em improviso, se montam para divulgar o programa conosco nas salas de aula, cantam música autoral do parceiro de trabalho, criam esquete conosco, pedem bis das canções, querem ver os instrumentos, o livro, se entrosam com os "participantes turistas" dos encontros, nos incluem no que criam, modelam, desenham, embarcam
em paisagem sonora...
Não tem como isso não reverberar quando chego ao ensino formal: não por acaso descobri uma brinquedoteca escondida onde dou aulas no EJA há meses. Esta pode ser uma grandeza e tanto ensinando: levar, mas abrir mão para que eles também proponham, sugiram, se coloquem, dividam experiências ou se questionem:
- Professora não ter amigo gay é preconceito?
Não tenho todas as respostas para o que se perguntam e me questionam, mas sinto estar num rumo certo deixando com a pulga atrás da orelha. Fazer debate render em turmas mistas de 16 a 60 anos certamente tem temperozinho dos encontros com as crianças e pré adolescentes no Piá. E quando nos abrimos ao abastecimento das relações, da troca, do encontro, da descoberta... Mesmo com mais de 50 horas entre trânsito, aulas, planejamentos, oficinas, reuniões... É uma canseira boa! Somos nutridas. Vamos pro "próximo round escolar" com a corda toda.
Nestas horas experiencio que dar aulas é uma arte. Da entrega, pré disposição, co criação... Um privilégio fazer o que gostamos em tempos sombrios para arte educação. Tem frio na barriga antes de encontrar os estudantes também. Não é porque não temos todo o tempo de criação dos artistas que não parimos obras até inesperadas - porque o planejado tinha uma rota traçada, a criação em grupo faz uma releitura da aula e nos surpreendemos positivamente. Já fico até querendo repensar meu TCC. Arte educação é migrar de trem bala a barco sem vela a espaçonave futurista dos Jetsons em processo. Só que tudo tem uma razão de ser. Parir novos seres humanos. Ser doula de estudantes melhores. E simbora que como não podia deixar de ser, o tempo urge. Muitas vezes não nos veem como artistas, mas estas obras custam sangue, suor e lágrimas e nem todo mestre está disposto a se reinventar. Mas sigamos nós mesmos com nossa resistência, trabalho de bastidores e formiguinha...