quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Livro dos Privilégios

Ganhou uma casa dos pais. Está inscrita no Livro dos Privilégios capítulo 6, página 4, no qual começar desse favorável ponto de partida permite brincar com o pai que pode fazer o que gosta, ter que ouvir que ele tomará a casa, já que ela se recusa ser bilheteira do metrô e fazer arte nas horas vagas e ainda retrucar que ele não pode, porque ela pagou a papelada em nome dela. É respondona. Foi a forma que encontrou de não brigar com o pai dando cadeirada feito as tias ou ser proibida de fazer ou ir em tudo que quer, feito a mãe e desistir do que está a fim por machismo. A mãe já é boa demais pra ser verdade. Diz a psicologia que a mãe ideal nos obriga a ser filhas pra sempre. Ela tem recusado esse papel, ainda que a depre da mãe não retroceda há três anos, desde a aposentadoria. Às vezes se magoa de ter seguido o que a progenitora dizia, pra nao ter filhos que é uma preocupação muito grande pro resto da vida, mas quando fez uma oficina cênica do feminino e estudou doula, achou a vida muito sabia de poupa-la da maternidade. Não teve irmãos. Na infância quis, mas também brincou tanto com os primos que desencanou. Brincou o suficiente pra ser abusada por dois deles, tomar bronca e apanhar, mesmo sem saber o que acontecia e se chocar porque desconfiava que havia algo de errado com aquilo. Pobre mãe, sempre deixando o pai atravessar o samba violentamente, sem conseguir defende-la, porque afinal o que seria duma mulher do interior na cidade grande sem o marido, primo casca grossa? Mesmo ganhando mais que ele? Dependência emocional é um inferno. E a que conta essa história herdou dum o jeito meio cachorro lambão de amar e do outro, o modo pé na porta de se posicionar, com uma pré disposição sagitariana de morrer quando abre a boca e uma risada de derrubar as pessoas da janela. Como diria um mestre teatral, a gente põe o pé pra fora da barriga e já se contradiz. Mas chega de falar de família, porque já terá overdose dela no Natal.
Capítulo 7 do livro dos privilégios: teve nove namorados e perdeu a conta dos bilaus amigos, de todas as espécies: o da adolescência, machista e homofóbico, do qual se conscientizou só madura, apesar de feminista leiga desde adolescente; o maníaco que até ganhou manchete de jornal; os negoes comunitários que vieram servir à comunidade feminina sem abrir o jogo; artistas mais sensíveis que ela mesma; o que queria ter filhos e a assustou já de saída; o traidor que engravidou a amante na depressão dela; o geminiano que falava mais que ela; o professor de yoga que virou reaça sem constrangimento, o tiozinho aventureiro meio cagao e finalmente o companheiro budista mais novo. Enumera só pra contar que é bissexual não praticante e que as excessões aos imaturos traumatizantes não completam meia dúzia no mercado amoroso. Já chorou mais do que mereciam em verso e prosa e até publicou. Os privilégios aqui foram nunca ter sido estuprada, nem apanhado ou ter sido roubada. Chega de drama amoroso por hoje.
Capítulo 8 da mesma tragicomédia: tem uma coleção de ex chefes jornalistas do naipe O Diabo Veste Prada. O suficiente pra ter ranço que se pagam bem, boa parte da verba terá que ir pra terapia, yoga, massagem ou retiros, pra não pirar. Com ela foi assim por 18 anos. Valeu a pena viajar, conhecer os amigos, fazer perguntas desaforadas, ser reconhecida pela voz, se encantar por assuntos inimagináveis, ganhar ingressos, se conscientizar, ganhar livros, almocar bem, cair de amores por trabalhos social, cultural e educativo. Mas foram tantos os plantões, reconhecimento baixo e insônias que terminou depre. E aqui, foi a família invasiva que ajudou nos seis meses chorando, com preguiça de viver e depois nos três anos frelando e cozinhando enquanto o jornalismo agonizava,  enquanto profissiolizava a contação de histórias que fazia desde a infância. Dessa transiçao, foi pra educação, na qual inesperadamente, pode ser humana e briguenta. Entre uma pauleira e outra, teve transição apertada como atriz, na qual pode viver muitas vidas, tão diferentes das dela. Conseguiu continuar como produtora cultural e escritora. Ah, as publicações...! Os filhos que demoram a pegar estrada, mas fica feliz quando ganham o mundo.
Capítulo 9 da coletânea de sofrimentos gourmet: busca o caminho do meio com terapias alternativas, tratamentos espirituais por trocas, se movimenta, é ativista, come mais ou menos bem e viaja. Ah, como se meteu a viajar fazendo quase tudo por permutas e com duas férias por ano! Sacou com juros e correção monetária o quanto não pode ficar centrada com o pé na estrada no jornalismo.
Mas porque ela lista sua vivências nesse compilado de privilegios? Pra admitir que se aborrece com os amigos chorando problemas gourmet porque também tem. E pra se constranger enchendo os ouvidos das parceiras de "literapia" com white's peoples problems. Mas com elas aprendeu a não pedir mais desculpa.

domingo, 9 de setembro de 2018

A ponto de comer o hidratante

Nunca foi boa em dietas. Sempre praticava mais dias de enfiar o pé na jaca e sair do controle do que disciplinados. Por décadas foi a rainha da cólica de intestino e nuns exames já meio produzidos pra dar esse resultado, descobriu uma intoleranciazinha, mas estranhava que mesmo em temporadas de abstinência do queijo, as dores batiam ponto. Até que ouviu a nutricionista, fez umas experiências, tirou o glúten, quando distraiu e colocou de novo na alimentação... Não só rolou da velha cólica como voltou a ter dor de estômago. Tirando o glúten o corpo ia ficando em paz de novo, mesmo quando enfiava o pé na jaca com os derivados de leite. Pronto, era isso o glúten. Foi quando ela, que já não comia carne há uma década, se sentiu naquele pesadelo em que desconfiou que fosse parar caso virasse vegana: não é possível se confraternizar com mais ninguém. O vento, o ar, a água e a terra têm glúten. Nunca se ligou como era viciada em pães, bolos, bolachas e que comia muito na rua devido a isso. Já está quase feito drogada:
- Estou há quase uma semana e meia sem glúten! Só por hoje!
Sente aquela irritação sem fim de quem não pode comer 2939212384134 coisas, mas quer todas. Vai tomar banho e quer comer o hidratante, tão cheiroso aquele creme. Certeza que é para a pele?
Volta à infância. Vai encontrar amigos e carrega lancheirinha: abre sua boia particular sem glúten. Como diversas vezes não tem gosto, faz um exercício budista para não dar na cara o quanto a adaptação a irrita profundamente.
Comprou pães sem glúten, sem lactose... Desenvolveu uma teoria:
- O pão que o diabo amassou é sem glúten! Veja que embalagem simpática: "ainda mais gostoso se aquecido". Só é comível aquecido. Caso contrário, nem sola de sapato não deve ser tão ruim.
Acha a vida fanfarrona. Agora que uma parte significativa da civilização se adaptou aos vegetarianos, não encontra mais nada em lanchonete, bar, restaurante, boteco, nem cafeteria do Sesc sem glúten. Sorri com fome e pede uma água de coco. Ou um açaí. Neste frio, o estômago segue com fome. Está feito modelo bulímica: cheirando o que não pode mais comer.
E na cozinha então? Agora que tinha chegado ao nível comível cozinhando sem carne, tem vontade de levantar, chamar o encarregado, reclamar da comida... Então se lembra que ela mesma é que fez, engole, mas sonha com um doce ou salgado que se pensar muito, é capaz de também dar reação.
O marido começou estranhar uns sumiços em casa..
- Viu meu creme de barbear?
- Comi.
- Mas você não passou mal?
- Ah deu um piriri, mas super de boas pra quem não tem mais cólica de intestino, nem  dor de estômago.
Preocupado, deu cabo de todo arsenal cheiroso feminino: hidratante, creme de cabelo, para as mãos, os pés.
Ultimamente os amigos têm estranhado seu sumiço.
Mas está numa empreitada terapêutica empreendedora: criou os intolerantes anônimos. Tem ouvido muitas noites, de outros irritados feito ela:
- Olá meu nome é Antônio e já estou há um mês sem glúten.
- Boa noite Antônio - devem responder todos em coro.
Será esta a tal síndrome do intestino irritado?
Não querem saber. Estão se organizando para descobrir quais cremes farão menos estragos caso desapareçam com eles dos banheiros de casas, furem a dieta e comam qualquer coisa cheirosa para pele que não tenha glúten.
Esperamos que sobrevivam.

A TPM me mantém em cativeiro

Baixei um aplicativo porque sou tão de humanas que erro até as contas do ciclo menstrual. A questão é que até esse programinha pra celular é machista: avisa meu período fértil, mas a chegada da TPM não. Resultado: na última descompensação hormonal mantive o encarregado da fábrica de chocolate Pan como refém. Porque essa indústria? Bom, é a mais próxima de casa e a única que todo dia faz um saldão estilo industriais vendem tudo. Ameaça fechar, mas já está há décadas deixando o bairro Santa Paula, em São Caetano com cheiro de chocolate no ar. Bom, exigia de resgate a produção da semana. Sim, somente sete dias no mês "quero mudar de sexo, cruzar a fronteira, deixar os amigos do trabalho falando sozinhos, sair pra comprar cigarros, eles lembrarem que não fumo, não entenderem nada e eu sumir sem deixar rastro". Daí que enviaram a guarda municipal para negociar quando no auge da última TPM exigia 1/4 do carregamento de chocolate mensal da fábrica vizinha como resgate do funcionário que sequestrei. A policial, também de TPM, exigiu meia produção do resgate que pedia para limpar minha barra, já que sou professora e meu surto não pegaria bem entre os funcionários públicos locais. A dona da fábrica, já na menopausa, avisou que não cederia, mas sua marqueteira, também "hormonalmente descompensada", botou panos quentes oferecendo um meio termo de 1/32 da produção que demandava, mas como contrapartida do preju eu e a policial municipal teríamos que gravar testemunhais do poder do chocolate contra a TPM. Nisso a PM atravessou o samba das negociações e eles, que não são conhecidos por bater antes de entrar, cortou abruptamente esta intrincada negociação e... Bom, agora escrevemos de trás das grades mesmo. Eu e a policial civil pedimos compaixão das manas feministas, doação de chocolates e... Bem, uma advogada que entendesse particularidades feministas também seria bem vinda... Dizem até que temos atenuante de pena quando perdemos a cabeça no auge da TPM...

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Cerrado e eu: um caso de amor

as férias se descarando na minha fuça
Goiás me atravessou duma tal forma que tive que decantar antes de voltar ao blog (que aliás precisa mudar de nome, já que não consigo ser tão periódica nas atualizações, afogada entre aulas, produções, contações, casa, gata e família). No começo, há quase duas semanas, cismei que o sono que aquelas pedras no solo e a tentativa da região "afinar meu violão desafinado por São Paulo" não deixaria aproveitar tudo que ansiava conhecer (ah, essa ansiedade doença da cidade grande, que vai feito pochete conosco pra fora da megalópole). Ouvia isso de quem morou lá e me chocava de deixarmos a doideira urbana nos adoecer. Mas foram uma tarde e umas noites caindo na cama cedo pra no terceiro dia eu já ter cara de férias, segundo a anfitriã da Casa Gentileza, uma mãezona
os generosos indígenas nos convidavam a dançar e cantar com eles
para filhas únicas atrapalhadas feito eu. Penso que os insights que o Cerrado me traz possam ainda colaborar para outros amigos pirados pela correria de Sampa. Ser alertada dos preços caros na lanchonete duma atração que queria visitar foi outro choque: caraca, encaramos estes valores de onde venho (e nem ganho tanto para naturalizá-los). Realmente quando tocamos o foda-se de não ter tanta verba, nem tanto tempo e ser pouco descolada (minhas costas já não encaram camping e sou um 0 à esquerda na culinária pra economizar por lá como deveria), de fato o que sentimos, pensamos, vai rolando a despeito da falta de sinal de celular. Todo dia "cantava" outro turista meio
meditei pelas cachoeiras
duro do albergue para agitarmos caronas pela região (já que não podia "desrosquear minha pepeca", largá-la no hostel e agilizar caronas sozinha e sem medo de ser violentada). No primeiro dia, visitando São Jorge, o poço São Bento e a feirinha natureba de Alto Paraíso com um carioca, encontrei sem querer minha amiga atriz paulista. Me liguei que preciso fazer as pazes em família para não sair batida de tudo que é lugar que me cutuca a gastrite, como um dos meus novos amigos de viagem. Tive um ensaio de pânico com as pedras lisas, o gelo da água e meu amigo sumindo mergulho adentro (não à toa né, quebrei o pé em Paraty e estrepei minhas primeiras férias maiores como professora). Sei lidar com isso no trem paulistano, não no mato. Parece que todos seus cagaços e demônios resolvem vir à tona, mas amigas que moraram lá já tinham alertado. Fiz que conta que não temia estragar o resto da viagem com os medos urbanos e traumas antigos. Quando finalmente conheci a Aldeia Multiétnica, depois de dois anos divulgando e com amigos gêmeos da história e geografia (aliás a viagem foi um tal de conhecer professor que quase fazíamos reunião pedagógica pelos botecos locais à noite). Senti que faziam uma espécie de performance, bem voltada àquele público meio turistão hippie chic da rica zona oeste de São Paulo. Entendi que se queria ter mais noção do que
esse canto subia e emocionava os caminhantes lá em cima
perdemos da cultura deles, tinha que entrar naquele tempo antropólogo de dormir numa aldeia. Me emocionei com discurso duma indígena na mesa feminista, antes mesmo da tradução, soube depois duma fala dos povos originários canadenses que a tradutora tirou a acusação dos franceses levarem bebida e droga às aldeias de lá na hora de nos falar em português o que ouvíamos em francês. Percebi que fazia toda diferença a "turistada" com grana não se conectar à ancestralidade indígena que tínhamos oportunidade de entrar em contato e ouvi por um amigo indígena dos professores que foram comigo que não saber o que significavam os nomes indígenas de bairros paulistas falava muito sobre os donos das terras, além dos colonizadores terem cortado a língua de quem não aceitava falar português há centenas de anos. É um milagre de Tupã ainda termos mais de duzentos idiomas desses povos nativos. E que orgulho das indígenas que manejam o facão terem posto um no pescoço dos empresários de Belo Monte para ouvi-las! Percebi ainda que as crianças caíam numa boa, deixavam suas mães falarem sem ciumeira, tudo por não contar só com elas como referências adultas femininas em suas tribos. Voltei bem nutrida, embora de bode do público hipster não parar de fazer live e selfie nos momentos dos rituais. Eu bem pedia desculpa pra fotografar e só não resisti quando aquele céu único do cerrado se apresentou. Tentei fazer como me ensinou
já destruída de abusar de mim mesma
o samba "alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarzinho". Imagine se lá também não encontrei amiga da formação de doula sem querer - bom, minha mãe diz que só cruzamos com conhecidos em multidões sem combinar com conexoes fortes com eles.
Nos dois dias seguintes passei horas em trilhas e micro escaladas pelas cachoeiras Almécegas I e II, São Bento, Santa Bárbara, Barbarinha e joguei a toalha na Capivara, já sem perna, $, sol e ânimo para "praticamente gravar um Lost na mata do cerrado". Nas primeiras, fiquei muito grata de poder andar, ver, mergulhar e boiar naquele banho de natureza que precisava (lembrei de crianças eternamente internadas que o Fê já contou histórias na Santa Casa). Sim, o cagaço foi embora. Pode ser inclusive que ele fosse de histórias pesadas familiares dos proprietários de parte das terras me contaminando..Vai saber? Depois da "overdose esquisotérica" de Goiás, não duvido de mais nada. Uma passarinhada típica local nos cumprimentou entre as trilhas e o albergue - tucanos, araras... Estava bom pro meu pai curtir, doido por eles! As flores do Cerrado, das mais diversas cores, nos davam uma pena da suspeita de algumas pessoas da região, de que o incêndio do ano passado tenha mesmo sido proposital (os poderosos locais parecem gostar mais dos empresários que dos turistas ecochatos)... Vi que por não ter muito contato com natureza em Sampa, chego no interior e quero ter dar conta de mais do que o corpo consegue... Resultado no quinto, sexto dia já tive que pegar leve com a perna doendo e sem $. Mas no quarto dia de vai e vem
não era nem o gelo que me congelava e sim não enxergar distância das pedras nos pés
pela região nem carona pedíamos mais, os colegas de trilha já ofereciam. Passei horas e horas proseando com novo amigo - adivinha se não era professor? Sobre capoeira, religião afro... Acho até que fomos monotemáticos com os outros amigos de viagem comendo e ouvindo música nos botecos da região. Teve vezes em que não resisti a pagar de ativista contra racismo e machismo em plenos café da manhã e jantar turísticos. É, levei mais de meia viagem para ficar lerda como meu pai, começar a ver cara de viagem pelas fotos, esquecer bolsas para trás e abrir mão de militar porque afinal, era recesso, não só escolar, mas do meu personagem briguento, familiar e ativista. Confirmei pela enésima vez que falta faz planejar o que, quando e com que $ faria quando curti mais a família que nos recebeu, outro turista duro tipo "pode crê" como eu no hostel. Ainda assim me dei uns presentinhos de comer no Cravo e Canela, Empório Santa Maria, Tasquinha, comprar lembrancinhas na Galeria Preguiça (embarcar na prosa com a atendente paulista) e curtir a falta de farol
comi essas flores azedinhas...
em Alto, fazer tudo a pé e me ligar com a adolescente do albergue que gosto de jovens em pequenas quantidades, só fico em alerta demais quando estão "em quadrilha" nos colégios. Sim, neste finzinho já estava com "banzo de viagem" na quase volta, pois teria que adiantar minha volta com pit stop não programado em Brasília. Não queria perder as derradeiras noite e manhã em Alto Paraíso, mas no fim das contas o engano quanto aos horários de partida dos ônibus para a capital e a pouca diferença das lotações entre as cidades me deram mais um tempinho no Cerrado. Finalmente encanada com a questão de onde dormir em BSB, ganhei aos 45 do 2o tempo uma ajuda duma amiga do MST, que sem carro para me apoiar lá, mobilizou senhoras para me pegarem na rodoviária, levar para dormir noutra amiga simples dela (cuja casa me auxiliou lembrar que nunca nos ligamos de ser gratos pela casa e bairro em que vivemos serem mais estruturados e menos perigosos pras bandas de SP) e ainda ganhei companhia para o aeroporto, na falta dum Uber que topasse encarar cidade satélite brasiliense. A gente só se liga do próprio privilégio dormindo entre os humildes, já que também estamos cercados de amigos paulistas em condições favoráveis. Não conseguiria retribuir essas gentileza em Sampa para minha amiga assentada, pois aqui não temos tempo nem para nós.
por do sol na Aldeia Multiétnica: como resistir?
O que o Cerrado me ensinou desta vez? Que continuo adiando melhorar meu condicionamento para encarar as trilhas mais caprichadas dos parques dos Veadeiros (MG) e Veredas (GO); a respeitar meus limites quando a dor e o aperto "acendem luzinhas internas de emergência"; que não só o céu e a gentileza das pessoas lá são outros, o tempo também; que quando os indígenas vão espontaneamente à cachoeira cantar e danças sem se preocupar com a turistada registrando tudo em audiovisual pelo entorno, é outra arrepiada que dão nas nossas peles (ganhamos essa bênção com os cariris xocós); que boiar e ver a água das cascatas cair em mim dá vontade de chorar; que só as construções das ocas para mesas indígenas feministas já prova o quanto não eram primitivos catzo nenhum; que uma  oca coletiva em que cada parte feita artesanalmente dela remetia às áreas do corpo humano emocionava e não dava coragem de sair fazendo mil cliques feito turista caricato japonês (desculpem amigos nipônicos); que os africanos e indígenas têm uma certa razão quando cismam que as fotos roubam nossas almas (somos e não
sem entender o guia quilombola numa das trilhas, caí de amores pela literatura deles
somos nós lá no celular, mídias sociais e laptops); que aos 40 não dá mais pra abusar da minha "casa corpo" comendo só fruta e bolacha horas e horas caminhando, pra só à noite jantar; que talvez tenha mesmo visto uma espaçonave na noite de fogueira feita pelo povo do hostel (outras caminhantes comentaram o mesmo no dia seguinte, mas não botei fé porque tinha bebido); que estou muito longe da minha versão zen da minha temporada jornalouca (quando fazia e estudava yoga, massagem, reiki, acupuntura, a ponto de hoje zoar os amigos badauês e o próprio universo quando demorou a me arrumar pernoite em Brasília); que o céu do Cerrado é esse de mentira, produzido, que só conhecemos nos planejados planetários urbanos (lá vi Saturno, Marte e um porrilhão de estrelas); que há doenças típicas de cidade grande, é só por o pé nelas para sentir ansiedade, alergias, necessidade de marcar nosso próprio território com nossas crenças que não chegarão aos mais velhos; que a eterna tensão de que seremos agredidas como mulheres nos faz mal (na volta, numa lotação com outros dois caras retornando, vi que num momento puxei papo na esperança "não me estupre, sou a moça pouco atraente das prosas sem fim"); que se levamos 15 dias para relaxar do ritmo doente das cidades grandes e em 99% dos passeios operários que fazemos só descansamos uma semaninha, isso também deve colaborar para nunca desligarmos e adoecermos. É uma bíblia, eu sei. Quem tem tempo para textões em Sampa? Mas escrevi na esperança de tatuar em mim as fichas caídas entre Alto Paraíso, Cavalvante e São Jorge (GO). E também para devolver a vibração pro universo: me leva de volta, menos enferrujada e numa viagem menos aos sopetões! Evoé!

sábado, 19 de maio de 2018

Há TPMs que "nos têm"

Em maio, uma TPM me teve. Foi nesta proporção mesmo. Não sei se um mix de problemas pequenos que se somaram e ganharam um peso maior, se quando não sofremos disso "xóvens" recebemos o mal estar com juros e correção monetária na fase... Digamos "maduras, quase caindo da árvore" ou há meses em que perdemos o pé e piramos no modo "angústia/ ansiedade descontrol". Afastem-se todos! Nem o aplicativo menstrual ajudou. Aliás, a esmagadora maioria deles avisa o período fértil. Só quero saber quando me esconder do universo porque está Tenso Pacas Mesmo. Ou pra conseguir isso tenho que passar meses informando estado de espírito, ânimo, alimentação, sono, disposição, exercício e vida sexual? Tecnologiazinha enxerida... O remédio antroposófico que já me deu a graça de passar pelo ciclo todo como se nada tivesse acontecendo, este mês não fez cócegas. Quis cruzar a fronteira, mudar de sexo, separar, jogar tudo pro alto, tive a sensação que a deprê fugiria comigo em desembestada carreira, como a fuga dos bandidos é descrita em entrevistas do programa do Datena. Mesmo depois de menstruar passei uns diazinhos do cão ainda. Geralmente vem e o mal estar emocional escorre modess abaixo, assim que desce. Apesar de ser feminista, conhecer os perigos da pílula, ter circulado nos círculos de mulheres badauês, tenho cogitado fortemente voltar a tomar anticoncepcional, emendar cartela e fugir disso. É injusto sermos reféns dos hormônios, nem usaremos mais eles! Uma noite nem fui trabalhar, parecia que ia descer e meu quadril cairia, de tanta dor no fim das costas. Cólica não tenho desde adolescente (ah, que ciclo tão gracioso, me poupando delas), mas a lombar vira um pesadelo acordada. Isso tudo bem quando comecei as danças brasileiras no Centro de Danças de Santo André e eu em dúvida se o fim das costas me arrebantava porque estava voltando à rotina de me exercitar três vezes por semana madura, quase caindo do galho ou porque ia descer. Quando desceu e em alguns dias a deprê não passou, quase liguei ao CVV. Tenho sonhado acordada em voltar à ginecologista natureba que me ajudou com fitoterápico a sair da pílula anos e anos atrás. Com esse veneninho hormonal diminuí meus ciclos de 1/3 vazando décadas e décadas atrás. Será que tem solução riponga pra TPM "do capiroto"? No nervo e proseando com amigas gringas em situação similar, pesquisei a geleia real. A primeira que encontrei, em embalagem minúscula, pensei que era produzida por apicultores albinos, na remanescente da Mata Atlântica e ouvindo Mozart, de tão cara! Depois encontrei as pílulas compráveis. E quando vamos comentar sobre a Tá Pra Morrer com umas almas insensíveis que praticamente debocham "nunca tive, não é da nossa época, coisa de 'xóvem'"... Rapaziada a gente tem até desconto na pena quando cometemos crime em TPM! Tô achando que é o caso de produzir um stand up sobre isso. Único jeito de capitalizar a dita cuja...

sexta-feira, 18 de maio de 2018

A Busca de um Corpo Extraordinário

Há duas semana as danças brasileiras me carregam pelo coração no Centro de Danças de Santo André. Namorava com estes ritmos há tempos, em oficinas do Sesc, aulas abertas de ONGs e curso do Instituto Brincante. Mas conseguindo uma das vagas gratuitas neste espaço do ABC, a possibilidade das apresentações no fim do ano aqueceu meu peito nesta época de retorno do frio. Dancei em cena no ensino médio (que na minha época chamava-se colegial), quando descobri que educação física podia ser lúdica, a criação com colegas de classe, encantadora e a troca com o público, inebriante. Apresentações alimentam esta gente de teatro como eu. Para mim, voltar à dança é sempre um movimento "porque demorou tanto pra voltar"? Ah, o trabalho, estudos, dores, distância, falta de grana, cansaço... Sempre o mundo nos apartando de nossas paixões inveteradas. Mas aos quarentinha percebi que se esperar o corpo dar trégua, não retorno aos exercícios que me alimentam. A última semana foi sofrida, mais por TPM que devido à lombar ou ao quanto o corpo estava enferrujado, já que vinha praticando pilates pra "rainha da coluna" (como diria a atriz Georgete Fadel) e natação pra asma, porém ambos com movimentos tão díspares da dança, fora a água segurando a bronca do impacto.
Temos experimentado as danças afro brasileiras. Nenhum movimento ao qual nossos membros estão habituados. Tem um quê de ancestral nas descobertas, música e coletividade. Quarta vivenciamos a água de Oxum. Nesta sexta a exigência dos joelhos, agachamentos, pulos foram me dando um cagaço. Depois de umas décadas não só nosso psicológico tem seus traumas. Ano passado senti o joelho durante o caboclinho lá no instituto do Antônio Nóbrega. Mas lá para as tantas, senti que de fato buscávamos um corpo extraordinário, que tantas senhorinhas em cena comigo não estavam se colocando travas, quem sabe não era o caso de se permitir, se jogar ou se provocar? O corpo inédito é um salto no desfiladeiro. Não é porque tenho imaginação literária que tenho a corporal provocada pela professora Cris Santos. É um jogo, uma criação em conjunto de imagens, uns giros didáticos, um sentir este corpo que pode, uma procura de uma expressividade que se perdeu, mas o corpo tem memória e evoca percursos. Vimos e experienciamos mãos de mel, pés no barro, bacia que se deslocava como água, músicas até mais caribenhas que africanas e fomos encontrando este território expressivo que é mágico - e não dói. Estávamos entre linóleo e colegas. Mas fomos criando, sentindo e expressando o que a professora conduziu. E foi potente!
Os relaxamentos extrapolam tanto os cênicos! A gente nem reconhece mais a tensão que se apegou aos nossos músculos e articulações. Preciso que façam os dois lados pra sentir o corpo mais entregue andando pelo espaço, perceber meio lado trabalhado por parceiros de cena ainda não consigo.
Há várias educadoras na minha turma. Os alunos podem ganhar com isso: ao menos no EJA II de Santo André nem arte educador dançarino temos. Mas parece leveza, movimento, desprendimento, destravamento demais para as aulas curtas que temos. Já se avizinha no horizonte possíveis festas juninas escolares. Vamos sentindo o que é possível.
Fora que ocupar os espaços culturais santoandreenses é político. Temos que nos engajar, apropriar e valorizar. A iniciativa pública periodicamente tenta sucatear todas escolas livres locais. Mas nós resistimos dançando!

terça-feira, 10 de abril de 2018

Ar "petroquimicado"

Nosso vizinho cospe fogo no ar. E não é um dragão. Estamos longe de uma terra do nunca. Quem solta fogo pelas narinas é a indústria petroquímica de Capuava, entre Mauá e Santo André, no ABC Paulista. Presenciei uma noite em que ela resolveu também derramar fogo. E então, muitos de nós, professores, não conseguimos seguir com as aulas. Vários estudantes quiseram debandar apavorados. Irônica como típica sagitariana, dizia que se era para escapulir, que fosse a três bairros de distância. Porque o ar "petroquimicado" já nos persegue há tempos nesta região. E segundo estudos da USP, compartilhados pela professora da ciências, esta poluição específica colabora com distúrbios da tireoide. Mas quem salva as glândulas da periferia? Nosso governo espoliando até nossas calças é que não é. Onde estão os ecochatos nessas horas? Na periferia eles são urgentes. Mas deixando à parte o tom panfletário dessa crônica, na noite em que a petroquímica saiu de sua rotina, assustando amigos e parceiros de trabalho, fui muito atriz pra seguir com a aula. E a petroquímica emitia sons assustadores, como um animal em cativeiro que ruge. Quando cheguei à sala de professores, questionando ainda calma os sons, meus colegas de escola já estavam tão assustados quanto os alunos. Lembrei da tireoide perdida da minha prima, na mesma cidade. Este ar "petroquimicado" segue contaminando até o Campestre, já perto de São Caetano? Na minha vizinhança não é o ar o mais pesado e sim, o solo, na Vila Carioca, também contaminado por indústrias, já próximo ao Ipiranga, que se bobear ganharam até isenção fiscal pra entregar este presente de grego à comunidade. Quem está por nós nas quebradas? Quando denunciaram o solo problemático dali, perto do Heliópolis, já na capital paulista, nem todos puderam desocupar suas moradias. Quem nos preserva da gente? Que evoluir tecnologicamente desconsiderando a comunidade é também um risco.
No dia seguinte, o fogo do céu da petroquímica estava tímido. E a contaminação silenciosa segue... Quem nos preserva deste avanço tecnológico ligeiramente destruidor? No meio da semana, não dou aula no Capuava. Mas e quem dorme entre o fogo e a contaminação? Parafraseando Elza Soares, a carne pobre é a mais barata do mercado.