quarta-feira, 12 de julho de 2017

Era só um curso...

Era só uma formação. Em doula. Mas estudar o que amamos nunca é "só uma capacitação". É olhar para o que nos move, nos conhecer melhor e... No caso do feminino, reconhecer antigas feridas negligenciadas, encontrar irmãs nesta jornada de resistência que é ser mulher desviando do machismo nosso de cada dia ou às vezes peitando o patriarcado - e rezando, claro que esta nunca é uma atitude segura.
Era só uma capacitação. Para além das aulas técnicas dos trimestres gestacionais, das fases do trabalho de parto, da placenta, das indicações reais de cesárea, do panorama no Sistema Único de Saúde, recomendações contratuais, plano de parto, puerpério... Estamos há quase duas semanas "internadas entre mulheres", nossas "mais novas amigas de infância da semana passada", oito horas por dia, o que se configurou informalmente num círculo improvisado de mulheres, que simbolicamente foram se ouvir e ser escutadas no Espaço D'Elas, no Butantã, em São Paulo.
Era só um curso. Mas lá compreendi que minha busca por um trabalho significativo, que em minhas temporadas de cursos de massagem, yoga, reiki, acupuntura não era por um percurso tradicional em saúde, mas pela humanização dela. Sempre desconfiei que se precisamos humanizar o que é feito por seres humanos, sinal de que a humanidade deu ruim, parafraseando minha professora de "contação" de histórias Ana Luiza Lacombe, que costuma dizer que se precisamos estudar narração de histórias, que é feita tão naturalmente em comunidades tradicionais, algo na sociedade pode ter desandado.
Não era só uma formação. Ouvir, aprender, ler e ser atravessada pelos relatos de partos, abortos, abusos, estupros, descasos, violências obstétricas, dificuldades com amamentação, criação de filhos e julgamentos. Vivenciar com eles o aprendizado pela história de vida do outro. E olha que conto histórias há décadas... Se tocar com tantas vivências. Se enxergar nelas. Nas entrelinhas.
Não era só uma capacitação. Ler, discutir, avaliar, debater, por em cheque, parir empatia em grupo e questionar conceitos, dúvidas e dinâmicas sobre humanização, filhos, disforia, dificuldades do universo trans, história de como o "capetalismo" se apropriou do corpo da mulher, sagrado feminino crítico, luto, avaliação do quanto os grupos de mães às vezes impõem partos que a maioria não tem como arcar... Só comprovou minha percepção da falta que faz humanidades nas formações de saúde.
Não era só um curso. Já vinha sendo tocante acabar de conhecer amigas com metade da minha idade, vivenciar alteridade com a troca de dores, praticamente plugar cabo USB emocional uma na outra e chorarmos juntas no nosso encontro de estreia. Imagine 80 horas caindo de amores pela luta de uma, conscientização da outra, batalha doutra companheira, indignação duma parceira de estudo, inocência de uma das comadres, militância ativa da que senta ao meu lado hoje, conexão da mais ressabiada, superação da que me desconcerta ontem, doçura da que admiro entre uma prosa e outra, abraço da mais nova velha irmã de jornada ou dor da que lembra tanto meus velhos mal estar de guerra? Foram narrativas curativas douladas, com o perdão da rima fora de lugar na prosa. Nós potencializamos sororidade. Provamos a falácia de nossa pseudo competitividade de gênero. Atravessamos um processo de cura em apoio, contradição e reflexão estratégica coletivos. É tão potente, inesperado, intensivo que dá uma dor no coração porque acaba em dois dias. Como se sustenta uma rede de apoio?
Deu bug na minha percepção da relação que tenho com o tempo de produção do que vendo. Não achei respostas, lógico: é uma travessia se encontrar na minha terceira reinvenção profissional. Percebi que estava me fixando à doença ou ao trabalho momentâneo e que isso boicota minhas viradas profissional e me reinventar para além do que trato. Uma semana depois do exercício empático de perguntar como estava o outro, ouvir e repetir o escutado sem julgar ou aconselhar, vi que podia usar a dinâmica de comunicação não violenta pra além da doulagem, mas com aqueles que amo e sofro quando não estão bem, proponho opções de melhora, mas não dou contar de ouvir os sobes e baixos porque tocam em feridas do que já enfrentei. Ainda questiono como passarei horas acordada apoiando um parto com meu sono chinfrim, mas desta vez, ao contrário de quando concorri numa formação em empreendedorismo que me roubaria o sono por dias, quero ao menos experimentar primeiro e avaliar depois. Vem, doulagem!