domingo, 20 de outubro de 2019

Banzo dos rios e cultura ribeirinha

Há pouco tempo percebi que o quanto estou próxima do que quis ser e tomei um susto. Parabenizei uma colega da antiga profissão, que sempre foi mochileira e me inspirou. Há décadas ela voluntariou na Amazônia, o que me despertou curiosidade. Acabei de voltar da região norte e me espantei: nossa fui trabalhar, pesquisar e ainda passeei pelos rio, ilhas e trechos da vegetação amazônica. E tenho viajado mais como professora do que consegui "mochilar" como jornalista. E neste sentido sou muito sagitariana: milhares de vezes tenho a percepção de que seguro a onda no trabalho pelas férias. Obviamente como semi nova já me liguei que não vivemos só pela alegria de por o pé na estrada.
Pras bandas de cá, também desconfio que além do espírito andarilho, vivo ainda para criar e estudar o que amo. Mas porque falar tanto de mim pra lembrar do Amapá e Pará? Apesar de nas postagens das redes sociais parecer que viajar é uma vivência tão externa a nós mesmos, nos últimos anos sinto que cada vez mais essas viagens foram para dentro de mim. Quando visitei o Museu Sacaca no Amapá e vi as reproduções das casas ribeirinhas, me perguntei:
- O que a casa do meu avô está fazendo aqui?
A construção de madeira, o vão embaixo das palafitas, os móveis rústicos, acessórios simples e a louça pendurada na parede eram todos os mesmos encontrados no norte do Paraná. Só o telhado de palha era típico da região Norte. Neste centro cultural, ainda encontramos informações da pesquisa fitoterápica do estudioso que deu nome ao espaço, ocas feitas pelas mais diversas tribos, esculturas de parteira, grávida e bebê nascendo numa esteira nessas palafitas recriadas para a exposição. Minha família também curou e recomendou ervas para diversos males durante anos, amávamos redes feito os indígenas e há anos estudei para doula, apaziguando expectativas maternais que eram externas aos meus próprios sonhos. 
É como se mochilasse por me sentir centrada com o pé na estrada, mas na prática me reencontrasse a cada comunidade tradicional visitada: entre os indígenas que fiz o projeto Oralidad Escrita em escolas bilíngues argentinas e nos que assisti em Alto Paraíso (GO), nos quilombolas em que  fiz vivência griô na Bahia e agora, no universo ribeirinho amapaense.
Mas nem só de vivências antropológicas se faz uma viagem! A gente cruza o país, mas não deixa a educadora pra trás: conhecendo o Marco Zero, que permite visualizar a linha do Equador estudada na escola, fiz poses metade num hemisfério e o restante no outro e percebi a diferença que dá experienciar para estudar. Vontade súbita de repassar vários cliques sobre os terraplanistas às turmas que ensino.
Não foi só neste ponto turístico do Amapá em que senti isso: no quilombo de Curiaú, quando tirei a sandália e mergulhei os pés na água, me espantei: "caramba esse é o igarapé"! Com relação às águas de lá e do Pará agi como recomenda o samba "alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarzinho". Já estava quase no meio da viagem quando criei coragem para mergulhar inteira no rio Amazonas, que via da frente do hotel e me chocava: "nossa esse é o maior rio do
mundo"! Ensaiei encarar suas águas na Ilha de Santana, porém lá estava meio seco e o mangue nos atolou, impedindo sair das margens. Ali percebi que me distanciar de casa é tão terapêutico que não me abalei quando vi que tínhamos ido para uma região remota demais, sem ter onde e o que comer, além da carona de volta demorar demais para nos resgatar. 
Não foi só nesta ilha que senti o potencial terapêutico da viagem: em Mazagão histórico paramos para fotos à beira d'água. Vi que tinha um deck de madeira, aproveitei para descer devagar (acho que ainda meio cabreira depois de quebrar o pé em Parati). Foi quando não senti mais os pés, tive cinco minutos aflitivos e me joguei rio adentro, nadando até o outro lado. Claro que estava raso, mas cheguei ao outro deck com a sensação não só de atravessar a nado, mas de também cruzar uma memória de dor e medo. Soube que
lá fazem cortejo e teatro de rua sobre a briga dos mouros com cristãos, na festa de São Tiago - que aqui no sudeste acontece nas congadas. Comecei a perceber que o interior do país dialoga, mesmo que baixinho e às vezes, sem se entender.
Desde que minhas férias foram se embrenhando Brasil adentro, fiquei com a sensação de que cada interior é um mundo, ao passo que o litoral costuma ser mais parecido. A caminho desse mergulho renovador que fiz paramos para acompanhar trabalhadores torrarem farinha de mandioca - e aqui lembrei que na vivência no quilombo baiano do Remanso colegas de estudos aprenderam com mestres locais a fazer... Farinha!
O capítulo gastronomia rende uma memória à parte: não dei conta dos pesados pratos cheios de camarão, imitando feijoada e cozidos que comem por lá. Depois ouvi de uma nutricionista local que o Pará é campeão de câncer de estômago devido à culinária indígena ligeiramente pesada. Depois de uma espécie de "rave de cultura popular", um tucupi com carimbó na lage, meu amigo, que manda bem na percussão, passou mal talvez com turu, um verme que dá em árvore meio podre. É, a gastronomia nortista é para os fortes! Mas pra não falar que voltei sem um gostinho de lá, provei suco de bacuri e
tapereba, açaí com farinha de mandioca, gelinho de graviola, farinha de tapioca diferente da nossa e côco no café, pescada dourada e filhote (esses últimos, com nossos acompanhamentos de costume).
Foi esse amigo que me apresentou o Círio. Chegamos já no fim, mas vi a Santa Nazaré chegar à Basílica, que tocou muito seu sino. Além das ruas lotadas de fiéis, vi diversas marcas aproveitando a manifestação popular para distribuir leques com orações de um lado e suas propagandas no verso, paraenses distribuindo água gratuitamente, acolhendo aqueles que têm fé, além de exposições em homenagem à Santa da Amazônia no aeroporto, que também distribuiu fitinhas para fazermos pedidos e amarrar no corpo, esperando que caiam e eles se realizem, além duma procissão fluvial atrasar a ida minha e da artista amapaense que conheci até o distrito de Fazendinha. Parece que a santa é afeita aos novos fiéis: fiz o ritual da fitinha e um processo empacado há três meses andou em São Paulo, antes mesmo deu voltar. Exagerada como típica sagitariana, já amarrei logo duas fitinhas do Círio. 
Essa viagem me transportou pra um tempo dilatado em que o relógio pareceu passar no ritmo interiorano. Levei dias para conhecer as lojinhas da Estação das Docas (e ter dificuldade pra resistir a elas). A vista era linda, mas desconfiei que o bolso fosse se ressentir de matar a fome ali. E depois de ouvir uma encarregada brigar com uma faxineira no banheiro, achei que era o caso de comer fora de lá. Fomos ao mercado Ver o Peso. Percebi que andávamos há um tempão: havia setores inteiros de
peixe, artesanato, óleos... Meu amigo me fez ver que não parecia enorme à toa: dizem que é o maior mercado a céu aberto do mundo. Quando escrevo dizem é por falta de conhecer mais o mundo: da imensidão do Ver o Peso não duvido. Almoçamos no meio dele. Então vi ambulantes divulgando seus produtos em bicicleta, com o som a todo vapor, produtos pendurados neles e até dando susto nos que tentavam almoçar (é, não entendi a agressiva estratégia de marketing). Ainda zanzamos pelo centro histórico (tenho sensação de visitar uma memória neles, tão similares nas capitais... Parecidos inclusive no abandono - infelizmente!). Conhecendo o Mangal das Garças, uma mistura de parque, museu, centro cultural e turístico, perdi o chapéu pro vento no farol - o por do sol era tão cativante que descuidei dele! No mirante, embaixo, me encantei com a preservação da vegetação e as construções não competirem na paisagem - ao menos não naquele trecho. Estávamos tão embevecidos com o sol se pondo que funcionários do espaço tiveram que nos tocar, já que o expediente deles tinha encerrado.
Ainda na rota "caída de amores pela natureza local", fomos para Ilha do Combu, uma das mais próximas de Belém. Lá vi ainda mais vegetação preservada. Fiz umas fotos intuitivas devido ao sol forte impedir visualização certeira e caímos na água. Meu amigo se espantou com a caipira do asfalto aqui nadando. E eu estranhei a piscina de rio que fizeram em frente ao restaurante que ficamos. Ao entrar, percebi que era pra criança. Estranho que a maioria dos frequentadores não estava aproveitando a água. Vai ver, neste dia receberam mais turistas que preferem a piscina de seus hotéis. A comida deu mais canseira que na Bahia para chegar, mas o barco, esse atravessou o rio com emoção de um mini bug correndo nas dunas de Natal, o que pode ter contribuído para não perder o voo.
Já ouvi que devia ter virado antropóloga porque adoro uma miséria. Adoro mesmo são as diferenças culturais: no Macapá encontrei todo um tempo menos afobado (percebi que às vezes levamos a ansiedade paulistana na bagagem), em Belém ouvi as pessoas se referindo a Deus e mundo como
mano e só tomarem banho frio. Mas cada vez vejo mais essa discrepância entre o tempo urbano e do interior. Na hora de voltar me deu uma dor no coração (parece que o corpo sabe o que está por vir porque logo no dia seguinte já me estressei menos de 24 horas depois de retornar) e também tive uma dozinha dos amigos ficarem tão longe.
Pra que o norte não embotasse na minha memória, fui mostrando aos estudantes as pesquisas nas comunidades ribeirinhas, os aprendizados nas visitas e as histórias do projeto Para Crianças Nada Bobas que levei ao Sesc de lá. Para parir este texto, dias depois do retorno com banzo do Norte, coloquei uma trilha sonora de carimbó. Se tem uma coisa que as andanças no Amapá e Pará deixaram em mim é a estranheza do nosso açaí com guaraná do Sudeste. E a vontade de voltar, claro. Que a cultura do Brasil Profundo não se esgota numa visitinha, muito embora a minha tenha parecido maior do que realmente foi.