sexta-feira, 27 de julho de 2018

Cerrado e eu: um caso de amor

as férias se descarando na minha fuça
Goiás me atravessou duma tal forma que tive que decantar antes de voltar ao blog (que aliás precisa mudar de nome, já que não consigo ser tão periódica nas atualizações, afogada entre aulas, produções, contações, casa, gata e família). No começo, há quase duas semanas, cismei que o sono que aquelas pedras no solo e a tentativa da região "afinar meu violão desafinado por São Paulo" não deixaria aproveitar tudo que ansiava conhecer (ah, essa ansiedade doença da cidade grande, que vai feito pochete conosco pra fora da megalópole). Ouvia isso de quem morou lá e me chocava de deixarmos a doideira urbana nos adoecer. Mas foram uma tarde e umas noites caindo na cama cedo pra no terceiro dia eu já ter cara de férias, segundo a anfitriã da Casa Gentileza, uma mãezona
os generosos indígenas nos convidavam a dançar e cantar com eles
para filhas únicas atrapalhadas feito eu. Penso que os insights que o Cerrado me traz possam ainda colaborar para outros amigos pirados pela correria de Sampa. Ser alertada dos preços caros na lanchonete duma atração que queria visitar foi outro choque: caraca, encaramos estes valores de onde venho (e nem ganho tanto para naturalizá-los). Realmente quando tocamos o foda-se de não ter tanta verba, nem tanto tempo e ser pouco descolada (minhas costas já não encaram camping e sou um 0 à esquerda na culinária pra economizar por lá como deveria), de fato o que sentimos, pensamos, vai rolando a despeito da falta de sinal de celular. Todo dia "cantava" outro turista meio
meditei pelas cachoeiras
duro do albergue para agitarmos caronas pela região (já que não podia "desrosquear minha pepeca", largá-la no hostel e agilizar caronas sozinha e sem medo de ser violentada). No primeiro dia, visitando São Jorge, o poço São Bento e a feirinha natureba de Alto Paraíso com um carioca, encontrei sem querer minha amiga atriz paulista. Me liguei que preciso fazer as pazes em família para não sair batida de tudo que é lugar que me cutuca a gastrite, como um dos meus novos amigos de viagem. Tive um ensaio de pânico com as pedras lisas, o gelo da água e meu amigo sumindo mergulho adentro (não à toa né, quebrei o pé em Paraty e estrepei minhas primeiras férias maiores como professora). Sei lidar com isso no trem paulistano, não no mato. Parece que todos seus cagaços e demônios resolvem vir à tona, mas amigas que moraram lá já tinham alertado. Fiz que conta que não temia estragar o resto da viagem com os medos urbanos e traumas antigos. Quando finalmente conheci a Aldeia Multiétnica, depois de dois anos divulgando e com amigos gêmeos da história e geografia (aliás a viagem foi um tal de conhecer professor que quase fazíamos reunião pedagógica pelos botecos locais à noite). Senti que faziam uma espécie de performance, bem voltada àquele público meio turistão hippie chic da rica zona oeste de São Paulo. Entendi que se queria ter mais noção do que
esse canto subia e emocionava os caminhantes lá em cima
perdemos da cultura deles, tinha que entrar naquele tempo antropólogo de dormir numa aldeia. Me emocionei com discurso duma indígena na mesa feminista, antes mesmo da tradução, soube depois duma fala dos povos originários canadenses que a tradutora tirou a acusação dos franceses levarem bebida e droga às aldeias de lá na hora de nos falar em português o que ouvíamos em francês. Percebi que fazia toda diferença a "turistada" com grana não se conectar à ancestralidade indígena que tínhamos oportunidade de entrar em contato e ouvi por um amigo indígena dos professores que foram comigo que não saber o que significavam os nomes indígenas de bairros paulistas falava muito sobre os donos das terras, além dos colonizadores terem cortado a língua de quem não aceitava falar português há centenas de anos. É um milagre de Tupã ainda termos mais de duzentos idiomas desses povos nativos. E que orgulho das indígenas que manejam o facão terem posto um no pescoço dos empresários de Belo Monte para ouvi-las! Percebi ainda que as crianças caíam numa boa, deixavam suas mães falarem sem ciumeira, tudo por não contar só com elas como referências adultas femininas em suas tribos. Voltei bem nutrida, embora de bode do público hipster não parar de fazer live e selfie nos momentos dos rituais. Eu bem pedia desculpa pra fotografar e só não resisti quando aquele céu único do cerrado se apresentou. Tentei fazer como me ensinou
já destruída de abusar de mim mesma
o samba "alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarzinho". Imagine se lá também não encontrei amiga da formação de doula sem querer - bom, minha mãe diz que só cruzamos com conhecidos em multidões sem combinar com conexoes fortes com eles.
Nos dois dias seguintes passei horas em trilhas e micro escaladas pelas cachoeiras Almécegas I e II, São Bento, Santa Bárbara, Barbarinha e joguei a toalha na Capivara, já sem perna, $, sol e ânimo para "praticamente gravar um Lost na mata do cerrado". Nas primeiras, fiquei muito grata de poder andar, ver, mergulhar e boiar naquele banho de natureza que precisava (lembrei de crianças eternamente internadas que o Fê já contou histórias na Santa Casa). Sim, o cagaço foi embora. Pode ser inclusive que ele fosse de histórias pesadas familiares dos proprietários de parte das terras me contaminando..Vai saber? Depois da "overdose esquisotérica" de Goiás, não duvido de mais nada. Uma passarinhada típica local nos cumprimentou entre as trilhas e o albergue - tucanos, araras... Estava bom pro meu pai curtir, doido por eles! As flores do Cerrado, das mais diversas cores, nos davam uma pena da suspeita de algumas pessoas da região, de que o incêndio do ano passado tenha mesmo sido proposital (os poderosos locais parecem gostar mais dos empresários que dos turistas ecochatos)... Vi que por não ter muito contato com natureza em Sampa, chego no interior e quero ter dar conta de mais do que o corpo consegue... Resultado no quinto, sexto dia já tive que pegar leve com a perna doendo e sem $. Mas no quarto dia de vai e vem
não era nem o gelo que me congelava e sim não enxergar distância das pedras nos pés
pela região nem carona pedíamos mais, os colegas de trilha já ofereciam. Passei horas e horas proseando com novo amigo - adivinha se não era professor? Sobre capoeira, religião afro... Acho até que fomos monotemáticos com os outros amigos de viagem comendo e ouvindo música nos botecos da região. Teve vezes em que não resisti a pagar de ativista contra racismo e machismo em plenos café da manhã e jantar turísticos. É, levei mais de meia viagem para ficar lerda como meu pai, começar a ver cara de viagem pelas fotos, esquecer bolsas para trás e abrir mão de militar porque afinal, era recesso, não só escolar, mas do meu personagem briguento, familiar e ativista. Confirmei pela enésima vez que falta faz planejar o que, quando e com que $ faria quando curti mais a família que nos recebeu, outro turista duro tipo "pode crê" como eu no hostel. Ainda assim me dei uns presentinhos de comer no Cravo e Canela, Empório Santa Maria, Tasquinha, comprar lembrancinhas na Galeria Preguiça (embarcar na prosa com a atendente paulista) e curtir a falta de farol
comi essas flores azedinhas...
em Alto, fazer tudo a pé e me ligar com a adolescente do albergue que gosto de jovens em pequenas quantidades, só fico em alerta demais quando estão "em quadrilha" nos colégios. Sim, neste finzinho já estava com "banzo de viagem" na quase volta, pois teria que adiantar minha volta com pit stop não programado em Brasília. Não queria perder as derradeiras noite e manhã em Alto Paraíso, mas no fim das contas o engano quanto aos horários de partida dos ônibus para a capital e a pouca diferença das lotações entre as cidades me deram mais um tempinho no Cerrado. Finalmente encanada com a questão de onde dormir em BSB, ganhei aos 45 do 2o tempo uma ajuda duma amiga do MST, que sem carro para me apoiar lá, mobilizou senhoras para me pegarem na rodoviária, levar para dormir noutra amiga simples dela (cuja casa me auxiliou lembrar que nunca nos ligamos de ser gratos pela casa e bairro em que vivemos serem mais estruturados e menos perigosos pras bandas de SP) e ainda ganhei companhia para o aeroporto, na falta dum Uber que topasse encarar cidade satélite brasiliense. A gente só se liga do próprio privilégio dormindo entre os humildes, já que também estamos cercados de amigos paulistas em condições favoráveis. Não conseguiria retribuir essas gentileza em Sampa para minha amiga assentada, pois aqui não temos tempo nem para nós.
por do sol na Aldeia Multiétnica: como resistir?
O que o Cerrado me ensinou desta vez? Que continuo adiando melhorar meu condicionamento para encarar as trilhas mais caprichadas dos parques dos Veadeiros (MG) e Veredas (GO); a respeitar meus limites quando a dor e o aperto "acendem luzinhas internas de emergência"; que não só o céu e a gentileza das pessoas lá são outros, o tempo também; que quando os indígenas vão espontaneamente à cachoeira cantar e danças sem se preocupar com a turistada registrando tudo em audiovisual pelo entorno, é outra arrepiada que dão nas nossas peles (ganhamos essa bênção com os cariris xocós); que boiar e ver a água das cascatas cair em mim dá vontade de chorar; que só as construções das ocas para mesas indígenas feministas já prova o quanto não eram primitivos catzo nenhum; que uma  oca coletiva em que cada parte feita artesanalmente dela remetia às áreas do corpo humano emocionava e não dava coragem de sair fazendo mil cliques feito turista caricato japonês (desculpem amigos nipônicos); que os africanos e indígenas têm uma certa razão quando cismam que as fotos roubam nossas almas (somos e não
sem entender o guia quilombola numa das trilhas, caí de amores pela literatura deles
somos nós lá no celular, mídias sociais e laptops); que aos 40 não dá mais pra abusar da minha "casa corpo" comendo só fruta e bolacha horas e horas caminhando, pra só à noite jantar; que talvez tenha mesmo visto uma espaçonave na noite de fogueira feita pelo povo do hostel (outras caminhantes comentaram o mesmo no dia seguinte, mas não botei fé porque tinha bebido); que estou muito longe da minha versão zen da minha temporada jornalouca (quando fazia e estudava yoga, massagem, reiki, acupuntura, a ponto de hoje zoar os amigos badauês e o próprio universo quando demorou a me arrumar pernoite em Brasília); que o céu do Cerrado é esse de mentira, produzido, que só conhecemos nos planejados planetários urbanos (lá vi Saturno, Marte e um porrilhão de estrelas); que há doenças típicas de cidade grande, é só por o pé nelas para sentir ansiedade, alergias, necessidade de marcar nosso próprio território com nossas crenças que não chegarão aos mais velhos; que a eterna tensão de que seremos agredidas como mulheres nos faz mal (na volta, numa lotação com outros dois caras retornando, vi que num momento puxei papo na esperança "não me estupre, sou a moça pouco atraente das prosas sem fim"); que se levamos 15 dias para relaxar do ritmo doente das cidades grandes e em 99% dos passeios operários que fazemos só descansamos uma semaninha, isso também deve colaborar para nunca desligarmos e adoecermos. É uma bíblia, eu sei. Quem tem tempo para textões em Sampa? Mas escrevi na esperança de tatuar em mim as fichas caídas entre Alto Paraíso, Cavalvante e São Jorge (GO). E também para devolver a vibração pro universo: me leva de volta, menos enferrujada e numa viagem menos aos sopetões! Evoé!