terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Rebordosa Eleitoral

 

Noivinha com cara de poucos amigos
entre os vizinhos, futuros bolsonaristas,
no pré, desconfiada que só uma
mãe de santo mudaria a política brasileira
Ainda arrasto correntes pela eleição aqui em meu semi isolamento. Ainda...! Devo ressaltar que essa rebordosa das urnas não se deve ao vira voto de véspera não ter sido o bastante. Há pelo menos dois anos buscamos alfabetizar politicamente os desavisados no chão de escola - e para isso nem preciso contar só com amigos educadores, os próprios estudantes já questionam os conservadores  de que a cidade retrocedeu na maior parte dos serviços que os impacta. Se considerar que artisticamente fazemos essa conscientização indireta - trabalhando Brecht e Augusto Boal, entre outros - lá se vão seis anos. Esse desabafo introdutório é para comprovar aos colegas esquerda caviar: militância emergencial de véspera não é o bastante. Nem nosso trabalho de formiguinha nos bastidores educativos é. Acrescento ainda que os amigos da saúde mental, ativismo sustentável, assistência social, militância feminista e criação artística engajada fazem parecido comigo: mediação criativa e conscientizadora para colaborar na leitura crítica e sensível do mundo. E ainda assim não damos conta. Precisamos que revezem conosco daqui até o próximo pleito, já que vários de nós têm adoecido, brochado, aposentado, entregue os pontos e operado no piloto automático.

Cada vez mais tenho compreendido e concordado com uma frase duma amiga de trabalho e criação que foi-se embora para o Nordeste: "nasci no Brasil, mas não mereço em morrer em São Paulo". Não por acaso eu e meu companheiro temos sonhado alto em fugir para Pernambuco. Parafraseando Crioulo "não há amor no Tucanistão". Nesse bode existencial de intolerância tucana, tenho tido delírios devido à insônia nos quais questiono o que os eleitores municipais tem contra nós se levamos material de casa para aulas mais criativas, brigamos pelos materiais sonegados para o quartinho de despejo da Educação de Jovens e Adultos, disputamos arduamente espaço na condução pública para carregar livros de arte e acessórios de cena, enfrentamos assédio para chegar à escola brincando e debatendo feminismo, reinventamos aulas para que percam o ranço dos professores conteudistas e tecnicistas que já tiveram... Porque a maioria reelege - ou se abstém - votando ou passando a responsa adiante para que siga no poder governos que concedem benefícios, compram votos, terminam obras na véspera da votação e ainda aprova maior desconto previdenciário dos servidores. Esses que tentam fazer algo pelo cidadão, mas com os serviços sucateados não tem sido muito simples. Porque essa medo e desconfiança de sair da gaiola política se a maioria reclama desde a última eleição que não está bom?

Não muda muio o panorama onde moro, a cidade mais rica do Brasil, que vota como mulher de malandro: a situação está ruim, mas não rompe o relacionamento abusivo porque não questiona mais as amarras invisíveis depois de tanta opressão imobilizadora. Antes o cassete do parceiro abusivo do que uma novidade que mal conseguem imaginar. É real aquela máxima: não me espanta, mas afeta. Entendo e concordo que o bom combate não é derrota, que a dupla Boulos e Erundina é gigante e que quando a política retrocede são anos ou décadas historicamente para avançarmos novamente rumo à justiça social, mas me animei sagitarianamente demais com a eleição de vereadores e alguns prefeitos representando a diversidade, tentei conter meu otimismo patológico sem sucesso; tenho sentido a prosa poética como uma utopia para a qual caminhamos, sem muita chance de atingir e bem, não sei vocês, mas queria Erunda de vice antes que ela vá militar no céu. #prontofalei Fora as bizarrices que encararemos no serviço público sem recurso ou agenda o bastante para todo auto cuidado que precisaremos, mas tá bem, chega de café da tarde com militância educativa por hoje.

Não, não estou em TPM, mas sim, tenho tido insônia e como Zeca Baleiro "ando tão à flor da pele que qualquer beijo de novela me faz chorar". Todo esse textão desabafo para concluir que a militância da esquerda precisa funcionar como uma corrida de revezamento: quando aqueles da linha de frente perderem o gás e precisarem recarregar as baterias, que os ativistas emergência pré eleição assumam o serviço pesado. Sim, o movimento #viravoto nos reacendeu uma esperança, poesa e diversão na campanha. Talvez as pessoas sensíveis com senso de justiça estejam numa sofrência maior agora. Podemos nos unir numa espécie de AA e se comprometer "só por hoje não acharei que o pobre de direita aceitará dividir seu pão com ovo".

Brincadeiras à parte estou há dias a fim de pedir aulas de como ser um sagitariano pé no chão para um sobrinho de 8 anos que há algumas votações disse que se fosse adulto, não votaria no Bolsoliro e tendo acompanhado a fundação do 1o partido socialista popular periférico anti capitalista percebeu meio precocemente "mas eles não deixariam nosso candidato ganhar". Vamos falar o que para essa turminha? Eles é que tem que ajudar transformar uns olhares por aí.

Agora com a licença de vocês, mas preciso por um sono rebelde em ordem...

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Querida Avó


Tenho sentido um chamado de te escrever. Evitei sem entender muito o porque das fugas. Talvez por não ter te conhecido. Por já ter partido. E não ter ideia de como dar palavra ao que não vivenciamos. Mas decidi descobrir como contatar você rascunhando. Porque? Bem na última faxina olhei novamente o porta retrato com meus outros avós e quis chorar. Ou porque comecei ler uma escritora negra que me lembrou outra feminista falar que provavelmente sou a primeira da minha geração a ter voz. Talvez escreva por você vó. Uma vez recebi uma chamada de reportagem sobre a vida sexual das avós. Corri. Por sempre ouvir que era autoritária, pouco participativa, bruta e indesejada. Será que foi assim contigo vó? Porque a lenda familiar dava conta de que era feliz com meu avô. O da foto. Por aqui, gerações depois já estamos na reparação histórica sexual.
Tem algo curiosos entre nossas conexões: você e o vô tinham nomes como os dos estudantes com os quais brinco, porque foram muito arrojados no batizado de todos. Seriam frutos de criatividade cabocla nos registros? Vô dizia tanto que éramos caboclo com caboclo que passei os últimos e recentes anos me embrenhando Brasil adentro. Achava que levantava a versão dos povos originários que sempre senti falta na escola. Mas fui atrás de mim vó. E me achei: nos chás das avós brejeiras das minhas primas. Nos causos ouvidos dos indígenas. Na noção de parentesco entre etnias deles. Na hospitalidade, comida sertaneja e dificuldades passadas pelos quilombolas. Levo o máximo possível para sala de aula vó.
Quero dividir sonhos: eu e meu companheiro sonhamos em fugir para o interior. Ele é descendente de nordestinos. Sei que vocês no interior sonhavam em fazer a vida aqui na cidade grande. Mas ela já detonou a saúde de todos nós. E acredito no que dizem os acolhedores mestres afro griô: "quando não sabemos para onde ir, temos que voltar para onde viemos". Para onde voltaria se fosse viva vó?
Lembrei que mãe e tias sempre lembram como choravam quando casavam e mudavam para longe da família de origem. Minha terapeuta conta de famílias em que a maioria não podia nem derrubar lágrima. Deve ser verdade que somos as primeiras a ter voz em gerações. É um pouco por isso que escrevo. A escritora que falei - Grada Kilomba - fala em seu livro/ tese que a pulsão de escrever vem da necessidade de ter voz, ser ouvida. O que você cochicharia ao pé do ouvido, próximas do fogão a lenha? Os sem terra urbanos do centro oeste me contaram do movimento das novas gerações - nós - a voltar pro sertão, interior... Sempre lembro da mãe contar como trabalhavam por comida, casa, móveis e cavalo nas fazendas do norte do Paraná. Talvez por não ter vivido isso, lembro mais forte dos cheiros de café, terra vermelha e chuva. A região nem tem mais esses aromas. Mas meu coração e nariz são apegados aos afetos em tons de sépia.
Por falar em fotos antigas tudo que conheci de você vó foi a foto em que segura minha mãe nos braços e está de joelhos, porque cegou temporariamente, fez promessa e voltou a ver. Por isso mãe tem nome da protetora da visão. Eu por um triz não ceguei também: as 7 cirurgias do glaucoma congênito, mais muitos colírios deixaram tudo sob controle. Esse vem e vai de questões oftalmológicas, sei lá só a psicanálise explica. Mas é gozado como tem qualquer coisa de simbólico nisso: vemos mais abusos eternos com dessossego que nossas antepassadas. Isso também é perturbador.
A saudade do meu viciante chão de escola também perturba. Não te contei? Estamos mais ou menos presos há seis meses por conta do risco de pegar Covid19. Dizem que vocês viveram outros outros sustos, por outras doenças. Não tem sido fácil: perdemos pessoas queridas, quando temos que sair tememos tudo e todos, pessoas que se amam há um semestre na mesma casa brigam por muito pouco... Talvez o clima mesmo da quarentena nos deixe saudosas. Sinto falta da piscina do Sesc (acredita que nadei com senhoras que comemoravam a viuvez que viviam?). Tenho saudade de fazer teatro sem intermediação de telas digitais.
Não dividi contigo né? Temos artistas em famílias e somos dos bons. Ouvimos que lá atrás alguns de nós éramos violeiros de moda caipira. Hoje em dia os que resistiram na trincheira das artes são do teatro. Só na base da criação para resistir a tudo isso.
E por falar em criação... De tanto querer e adiar te escrever lembrei da minissérie A Casa das Sete Mulheres. Acho que nesse movimento feminista e de círculo de mulheres entendo o que me encantava tanto nessa produção: elas também viviam aquele cotidiano doméstico sem muitas possibilidades. É a mesma razão do quanto me atraía, mas sofria com a personagem Ana Terra, do Érico Veríssimo, que enfrentava a mesma pasmaceira doméstica, mas sonhava com mais. Como talvez pode ter sido seu dia a dia vó.
Talvez por ser uma das primeira entre Machados, Duarte, Mendonça e Brandão a ter voz, te escrevo para contar que sinto muito por não ter ouvido a sua. Por todas as cartas à mão que dão saudade do cheiro paranaense serem do meu avô.
Espero que meus sonhos, lutas, ideais e escolhas não te decepcionem.
Te <3 sem nem entender.
Sua neta arteira, Fran

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Arte como canoa para travessia

Depois de meses entocada voltei à travessia duas cidades para lá de casa. Há mais de quatro ciclos lunares entocada, com espaçadas escapadelas de abastecimento, auto cuidado e ajuda aos pais. O mais perto possível. Nas poucas saidinhas mais contramão de casa, rezei na condução pública, tomei banho de álcool em gel em cada encostada.
Mas esta semana subi na moto como quem sobe o Corcovado. E a despeito do motivo melancólico, fiquei maravilhada com o sol na cabeça, o vento no rosto, o reconhecimento de cada café, bairro, parque, avenida da cidade em que trabalho e o espanto de só ter atingido esse pertencimento lá por ter criado raízes no trabalho pela 1a vez.
Apesar do coração na mão, meu companheiro tinha razão: o lugar é bonito. Não sabia o que dizer, talvez meti os pés pelas mãos, mas as máscaras também previnem bolas fora para tagarelas como eu. Ainda não tinha vivido a estranheza de consolar e me despedir sem abraços. Bom, estávamos meio de bode da pasmaceira do isolamento. De sopetão ficou intenso e derradeiro demais.
Lá para as tantas não sei se a asma me tirou o ar, se não saber lidar com os momentos corta pulsos me tirou o chão ou se aos 45 do 2o tempo tive medo de estar no grupo de risco e longe de casa, tentei tomar um ar com o marido, que trouxe um capuccino pra sei lá, eu não me partir em lágrimas. Há meses sentia falta desses cafés em que os baristas põem tanta coisa, que meu pai diz que comemos uma torta e não tomamos um drinque cafeinado. Me despedi atabalhoada e de novo, a garupa me envolveu em memórias e afetos: recordando e celebrando cada esquina santoandreense, fazendo festa entre o vento, cabelo e o capacete e pela primeira vez em décadas abraçando o sol felizaça. Branquelos como eu não tinham boas memórias com o sol antes do corona19.
Aterrizei da carona em casa e já despenquei culpa abaixo. Afinal, tinha perdido minha segunda mãe. Me senti mal pela animação de sair da toca depois de quase criar mofo nela. Minha gatinha Peteca miava enlouquecida. Entrei num estado roupão: só queria sofá. Acho que meu marido, que tinha ido ao banco, adivinhou e trouxe fast food para nos animarmos com o almoço junkie. De lá para cá embarquei numa rave burocrático-acadêmica entre videoconferências, repartições públicas e home office. Não dei conta de muito do que costumo usar pra manter a sanidade em tempos sombrios. Ainda assim manter o que não tinha negociação de prazo foi uma despistada boa da tristeza. E sabe-se lá porque boa parte dos sensíveis como eu tentam dar perdido no mal estar. Obviamente que encontrar o que ela me deu ou amigos perguntarem como estava já produziram muito desaguar.
Quem me resgatou desse vai e vem do luto foi - sempre ela - a arte. Partilhei estudos e práticas de Teatro do Oprimido(TO) numa conferência sobre ensino cênico na internet. Costumo resgatar os causos do começo do TO e dos praticantes pra contextualizar nessas trocas. Podia usar uma meia dúzia deles, mas contei do grupo das Marias que fazem faxina e atuam. Minha 2a mãe cuidou da minha casa e da de vários parentes por décadas. Estudar o que se ama tem disso: a gente se melhora no processo. Há dois anos estudei reforma trabalhista e esse grupo das Marias com meus alunos, entre os quais muitos já limparam casas, mudei meus olhares e questionei várias coisas com minha 2a mãe. Mas quando ela dizia que não era como desconfiava que podia ser, ninguém mudava a visão dela...
Foi ainda a música que me aproximou dela na semana quase se esvaindo: estudei percussão e canto de trabalho. Nessa segunda pesquisa, os professores partilharam canções de comunidades interioranas de trabalhadores em que depois deles entoarem a letra, somos convidados a emendar criando versos e então nossos mestres voltam ao refrão. Fiz versos pra amiga: "minha amiga foi embora/ já chorei meia semana/ com a cantoria lembrei/ que a vida é boa".
Já estamos há mais de 120 dias tentando acostumar com as incertezas. Com a passagem da minha 2a mãe, não tenho mais ideia quando os rompantes chorosos voltarão. Mas uma coisa tenho sentido pulsar nessa entressafra sanitária que estamos tolerando: a arte é minha canoa para travessia desse maremoto; E você, em que suporte embarcou para não temer essa tsunami?

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Mosaico de Rostos

Compulsiva por estudo: sou dessas. Até mais do que em relação ao trabalho. Mal comecei as férias da pós e das disciplinas pro futuro mestrado e já embarquei nas conferências meio cênicas e meio digitais da comunidade Quinta Parede. Uma amiga da outra pós criou esta comunidade no Fuçabook para discutir os desafios de ensinar teatro na pandemia.
Quando participei e ainda discutíamos isso, parece que outros professores, de outras áreas, mas com dificuldades semelhantes já traziam as desigualdades sociais que tornam a arte educação quase missão impossível em diferentes redes públicas de ensino.
Agora na nova fase da gente se rever no Google Meetings sorteamos, experimentamos, dividimos alegrias, propomos saídas para dificuldades e discutimos as avaliações propostas pelas fichas de jogos teatrais da Viola Spolin. Em algumas das propostas que essa teatróloga vivenciou com operários mergulhamos mais lúdicos que nunca. Até meu marido ensaiou participar da sala ouvindo minha animação no escritório. Ganhamos uma presença, um viço, um jogo de cintura e nos divertimos criando juntos. Noutro sorteio fizemos mas sentimos falta de uma continuidade pra dinâmica e na derradeira, quase nada da ficha pode ser transplantado pro ambiente chamado por um dos participantes de "mosaico de rostos". Dá até vontade de escrever uma dramaturgia com essa inspiração. Experimentar na internet com amigos "arteiros" é bem pedagógico: também temos turmas animadas, brochadas e semi engajadas nas escolas offline.
Em duas semanas experimentaremos jogos de teatro do oprimido de Augusto Boal! E até lá, a expectativa e animação põem lenha nessa fogueira teatral. Pra nós, que fomos picados pelo bichinho das coxias segue fazendo falta o encontro, o efêmero, o espontâneo, a integração do grupo, o jogo de cintura com um parceiro de cena e ressignificar objetos duma sala menos pessoal que nossas casas... Mas também fazemos parte daqueles aos quais a falta dos aprendizes, colegas de estudos e parceiros de criação está tão inflacionada, que qualquer ajuste digital que possibilite parte disso é abraçado prontamente.
Meu único problema de fazer curso totalmente virtual é que isso me revelou uma stalker e tanto. Algum outro participante acena afinidade comigo e já confiro perfil, quero ser amiga, mas estou segurando minha onda já que mal dou conta do que tenho no colo atualmente. Pouco depois do início da pandemia li que nos períodos mais tensos politica e economicamente na Europa, fazia-se teatro apesar de perseguições e outras dificuldades. Claro que apesar da gravidade do que vivemos, não é possível comparar a esses períodos históricos. Mas justamente por ser ocasião menos pesada, ainda damos um jeito de superar os paus técnicos para experimentar e descobrir como (re)fazer vínculos em tempos sombrios.
Ops, por um triz esqueci dessas pequenas grandes alegrias: rever amigos dos palcos em cena e eles festejarem nossa "chegada" virtual. Que a gente sustente essas pontes online para depois refazê-las offline.

sábado, 20 de junho de 2020

Construção meditativa de pau de chuva

Só no isolamento entendi um amigo judeu que afirmava ser o teatro a verdadeira religião dele. Apesar de também vir duma paixão pelas coxias (os bastidores teatrais) e de ser meio budista, meio macumbeira, na quarentena experiencio que a arte é minha religião raiz. Claro que me apoio noutras "muletas": me movimentar faz com que a serotonina fique num nível razoável para quando der uma encrenca consiga vencer a prostração e resolver. O estudo do que amo alimenta as inspirações, dá ideias e permite trocas que nos instigam. Meditar me deixa confortável nessa mente, que é a única que tenho. Ver filme ou série às vezes anestesia, às vezes traz novas descobertas - como agora que confiro Segunda Chamada, sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA) em que trabalho. Mas como é possível prever pela lista de auto cuidado acima, não dá para manter a constância em tudo nem em tempos pandêmicos. Quando a agenda ou a grana aperta, recorro à arte. Esta é uma obviedade para quem ensina artes, mas me esquecer na experimentação artística e vivenciar como ela reverbera para além da expressão ou linguagem que exploro no momento são encantos que surgiram com a pandemia. Farei uma associação didática com minha própria espiritualidade: embora meu coração seja macumbeiro, a cabeça é budista. E nesta segunda, aprendemos e debatemos temas que nunca ouvi nas outras muitas religiões que conheci: apego, auto centramento, aversão, inexistência intríseca do que nos faz sofrer, iluminação, reino dos seres famintos, não identificação com nossas emoções, obtusidade mental, entre outras cabeçudices. Não por acaso estou entre esses retiros, estudos e meditações há 16 anos: também sou cabeçuda. Volta e meia ouvimos dos facilitadores e mestres sobre auto geração de energia autônoma para romper a eterna sede dos carentes que sempre buscam tomá-la do que se apegam. É mais uma das tantas teorias que só a pira do corona me fez sentir. E enquanto não reverbera no corpo, é muito difícil que qualquer conhecimento se fixe em mim. Nos últimos dias andei meio caída: emoções angustiantes, que minha vigília crítica não conseguia jogar para escanteio, burocracias empacadas, estudos meio quadrados tomando a maior parte do tempo, cansaço de situações repetitivas cujas sugestões de resolução que muitos propuseram já foram exploradas à exaustão, mas somos incapazes de sustentar as melhoras. Quando fui estudar um livro que quero contar, encontrei entre os elementos de cena uma flauta diferente que já tinha imaginado de outra forma porque estava encostada. Desencanei de ensaiar a história que contarei e fui transformar essa flauta num pau de chuva. Planejei como tenho dificuldade de fazer em minha própria vida: separei tudo que usaria antes de começar. Ressignificar o mundo à nossa volta viabiliza que a gente ensaie pra mudar o mundo pra além do nosso universo particular. Criar sensibiliza a gente: minha gata causou brincando com os materiais que usaria, mas o processo me deixou tão encantada que ri dela feito criança. A arte é um terreno em aberto para nossa expressão: me satisfiz mais com as cores e brilhos do que com o som. E embora seja um instrumento indígena, me arriscar serviu também para ser mais generosa comigo. Não ouvi o que pensei que ressoaria, mas rebatizei para pau de garoa (meu marido está chamando de pau de sereno), mas me senti tão presente, esqueci tanto da vida que fiquei rindo espontaneamente, a playlist do Antonio Nóbrega combinou tanto com o momento que relativizei o som fugir do que imaginei. Na vida costumo ser mais sargenta comigo. A arte nos torna melhores porque comecei meio desgostosa com o que contei e terminei não só feliz, mas percebendo a mudança do estado de espírito e ficando presente o suficiente para curtir essa transição. A partir desse movimento interno terminei lidando melhor com todos no entorno. É uma meditação em movimento porque ficamos no momento em que agimos, mas também percebemos maior ânimo para as coisas externas. A arte possibilita que a gente exercite nossa criatividade, descubra caminhos, passe por cima do que não funcionou e celebre se esquecer entre tecidos, glitter, tesoura, grãos, durex, pincel e fita crepe. Que a gente leve esta criatividade ensaiada para todas áreas da vida que precisam. Listo essas impressões marcantes porque já ouvi e li várias espiritualidades que oferecem o mesmo. Mas eu cheguei em cada ficha que caiu fora dos retiros, vivências, rodas e workshops que experimentei - alguns desses também me fizeram bem, mas nem tanto quanto a experimentação artística. Que vocês experimentem também - e comentem, lógico!

domingo, 14 de junho de 2020

No meio dessa busca havia uma reviravolta

Ainda não tinha me localizado entre as mensagens da família e do trabalho, quando a Nina me procurou desesperada. Se caiu de pára quedas nesse bonde andando e não consegue sentar na janelinha e dar tchauzinho, Nina foi o pivô da briga entre eu e o Davi, no estilo melodramático rasgado "ou ela ou eu"! Ainda era cedo então demorei a entender, até porque a Nina também é meio tragicômica. Apesar do sono, nada soou minimamente engraçado depois de cinco minutos: o Davi tinha desaparecido e a Nina procurava alguma pista do paradeiro dele.
Meio bêbada de sono respondi no piloto automático que a ajudaria. Não que tivesse ideia por onde começar, mas como tinha discutido há pouco tempo com ele, estava com raiva o suficiente para levantar palpites de onde procurar. Desisti de me encontrar entre as mensagens dos conhecidos, chefes e colegas de trabalho e fui encontrá-la. Na entrada da estação a barraquinha de café da manhã caseiro me lembrou que continuava de estômago vazio. Preenchi a barriga com a média e pão torrado de sempre e fui atrás da Nina, porque ainda tinha uma viagem urbana pela frente.
De repente a empreitada de ajudar a "pseudo amante" dele a encontrá-lo me pareceu o tipo de bizarrice que só eu mesma para me meter. Mas era cedo o bastante para o cansaço ainda tomar conta de mim, então dormi e babei com sucesso até a plataforma da outra ponta da linha, onde nos encontraríamos. Fui me tocar que já estava no destino final com a gravação do condutor nos tocando do vagão para recolher o trem. Desembarquei e a Nina veio me encontrar. É bonita, Minha intuição não estava de todo errada de ter ciúme do Davi. Nós sorrimos amarelo e sentamos para entender se tínhamos ideia do que podia ter acontecido. Ele tinha sumido na véspera, ainda cedo. Pouco tempo depois do nosso bate boca. Tive dúvida se contava da briga porque já estava me perguntando se  ajudei sem querer no sumiço dele. Nina falou com nossas quase cunhadas, soube que ele tinha deixado documento, celular e moto lá, passou no trabalho dele, nem rastro do irresponsável, procurou ainda pelos amigos com os quais mais conversava nas redes sociais, nenhum tinha notícia. Estava grilada por causa da deprê dele, parece que os remédios também foram deixados para trás. Quando ouvi isso, muito dos rompantes e dificuldade absurda dele levantar da cama fizeram sentido. Porcaria: ela o conhece mais que eu?
Nina deve ter perguntando mais de uma vez por onde poderíamos caçá-lo, porque estive temporariamente no mundo da lua sem articular resposta. Encontrei um bloquinho de notas na minha bolsa, rascunhei e sugeri um roteiro para ela: hospital perto da casa dele, delegacia próxima ao trabalho, IML e bares que costumava ir.
- Quer incluir algo? - perguntei. Mas ela topou o roteiro proposto. - Se tivermos outras ideias nestas andanças, atualizamos por onde passar.
Sem carro, esse vai e vem levou muito mais tempo do que tomaria motorizada. Além das duplas conduções de um ponto a outro, pelo caminho fomos percebendo que era preciso ampliar um pouco as buscas. No hospital por exemplo, não havia dado entrada nenhum Davi neste meio tempo em que ele sumiu do mapa. Propuseram que víssemos no posto: vai que teve algo mais simples? Passamos lá também, mas apesar de ser na mesma região, como o transporte público periférico presta um desserviço nessas horas, demorou horrores até a etapa saúde pública ser ticada da lista. Nada de Davi internado, se examinando ou tomando medicação. Pista furada.
Entre os stress e preocupação, acabamos nos aproximando. Ela estudava algo que já flertei pesquisar: roteiro. Nina riu enquanto desabafei do trabalho. Aliás só lembrei de dar um sinal de vida quando já estava sem memória para mais mensagens no celular. Quando ela relaxava dava para entender o que ele via nela. Uma parte de mim se incomodava: não sei porque, já tinha dito ao Davi que não queria mais ver a sombra dele. Nos momentos em que Nina se preocupava esquecia o mal estar e tentava parir alguma ideia de onde podíamos ir ainda naquela terça cinzenta.
Fomos parar próximo de onde o desaparecido trabalhava. E por lá fizemos uma ronda caprichada: na delegacia foram estúpidos, mas também não levantaram pista alguma do sumido. Paramos para comer, pois já tinha passado da hora de forrar o estômago e estávamos meio sem saber o que pensar. Soube que ela mora onde vive minha avó. Comemos todas besteiras disponíveis na lanchonete, talvez por um nervoso inconfesso. Foi a vez da Nina falar do trabalho: faz revisões, também está cansada da precarização do mercado e tem frelas atrasados. Sorri amarelo. Parece uma moça que entrou de gaiata no navio tanto quanto eu. Contei dos parentes perto de onde ela mora, de como o trabalho não dá vontade de levantar e os sonhos de viajar. Dou risada de nervoso.
Embaçamos o quanto foi possível, mas fomos parar no IML. Os funcionários trataram com estranheza duas mulheres perguntando dum mesmo homem do tipo "curva de rio". Falta de imaginação desses legistas. Podemos ter ciúme, mas o embuste some e uma de nós sofre, vamos lá dar uma força e descobrir o que aconteceu. O que acontecerá depois... Bom, o futuro é misterioso, paciência! Por hora nos bastava não ter a mais vaga noção do que rolou com o Davi. Nada entre os arquivos e nem entre os presuntos. Podíamos sair ainda como não viúvas. Pensei em brincar para descontrair, mas percebendo que ela franzia a testa, desisti.
Já estava tarde e começava nossa saga boêmia atrás do Davi. Parecia roteiro de curta, mas não, a arte é que imita a vida. Ele bebia heim? Perdemos a conta dos balcões em que perguntamos por ele. Alguns garçons e frequentadores nos reconheceram de outras bebedeiras com ele. Estranharam também lógico. Deviam se perguntar quem entre nós duas era a sede e qual seria a filial. Porque depois de alguns botecos notamos os olhares mais inquisidores. Depois de muito pé sujo e mais sobrancelhas franzidas, Nina ouviu o celular tocando. Fiquei temporariamente com o coração na mão, porque depois de passar em tanto lugar questionando paradeiro dele... Vai que algum deles ligava e a notícia não era das melhores? A ligação pareceu durar uma eternidade. Nina ficou emburrada numa expressão que não conseguia compreender o que queria dizer. Finalmente desligou: tinha notícias, mas eram revoltantes. Sentamos no degrau de saída do boteco meio caído em que estávamos. A irmã procurou pra contar que Davi deu uma surtada, largou tudo pra trás e estava nos tios do interior. Nós desacreditamos que praticamente tínhamos batido perna atrás dele o tempo todo e o desaparecimento foi um piti que ele deu, mas esqueceu de nos avisar.
- Se a gente desse uma dessas...
- Era acusada de histérica.
- Inacreditável.
- Acho que ele foi pra lá depois da briga contigo.
- Será que isso mexeu tanto assim com ele? No dia não pareceu.
- Sabe como é homem: a gente contraria e eles piram.
- Foi patético, mas ao menos pude te conhecer.
- E o nervoso partilhado humanizou esse desencontro todo.
- Com ele sem celular nem temos como brigar com o cretino!
Um forró ao vivo atravessou nossa conversa, vindo do bar da frente. Não fazia parte da rota que o Davi frequentava e resolvemos beber por lá para esquecer do dia zicado que finalmente chegava ao fim. Avisei os que me procuravam mais insistentemente desde cedo e ainda se mantinham sem resposta. E não é que os músicos eram bons? Ela se empolgou na cerveja. Eu, que já não sou muito do chopp, fiquei na pinga com mel, que caía muito bem para um rastapé. Um frequentador mexeu com Nina, me meti no meio, batemos boca e adivinhe? Nos convidaram a cair fora. Ela me chamou para casa dela. Pelos meus cálculos e limitações do transporte público, seria mais fácil terminar estas andanças nela mesmo. Com a demora sem fim do ônibus a Nina conseguiu um táxi em aplicativo. Nisso eu já cantava, chorava e ria na calçada. Ela deve ter comemorado quando me colocou no carro, porque devia estar uma cena contraditória demais para continuar dando show na porta do bar que nos expulsou. Já na Nina, desabafei todo nervoso do dia, toda a raiva que fingi relativizar mais cedo e terminei num choro derradeiro. Ela trouxe um chá. No meio das lágrimas, fui beijada. Numa mistura de relaxamento, surpresa e celebração, ficamos juntas. Pusemos música, confessamos ciúme mútuo do Davi e decretamos que ele fosse à merda. Desencanamos de dormir e transamos em modo repeat pela casa toda.
No outro dia, o sol despertou nossa ressaca e atraso no meio do escritório dela. Ainda nos olhávamos como quem diz "que tiro foi esse"? Tomamos café no ritmo da nossa dor de cabeça. Ela foi me levar à estação e ainda nos atracamos na plataforma. Que Davi que nada! No vagão, escrevi pra meia dúzia de amigas porque essa foi a reviravolta com mais cara de série que já vivi. Fugi para o trabalho a fim de aterrar um pouco, produzir e prestar contas porque estava precisando mostrar serviço depois dos últimos furos. Esqueci tanto da vida por lá que comi atrás do computador e perdi noção da hora. Quando finalmente vazei pra casa... Encontrei com o Davi rodando a firma. Briguei tudo que tive vontade quando soubemos na véspera do quanto ele foi bundão. Depois de vomitar toda minha indignação, ele jogou todo charme que tinha em estoque e propôs que formássemos um trisal. Voltei à revolta anterior, mas antes que gritasse de novo, Davi explicou que foi sugestão da Nina também e pediu para ver as mensagens dela. Nesta altura do campeonato, o bate boca já estava ficando vexatório para rolar tão perto do trabalho. Fomos parar num café. Só o Davi mesmo para encontrar essas coisas ainda abertas, em dias e horários já ingratos. Encontrei não só a mesma proposta da Nina para virarmos um trio, quanto uma declaração que não devo ter ouvido nem dos meus ex maridos. Já estava estranhamente com pernas bambas quando ligamos para Nina. Por mais absurdo que pareça, a três rascunhamos verbalmente todos combinados para começarmos o trisal. Ainda não tínhamos vivido nada similar: tateávamos no escuro e descobríamos juntos. Davi topou esperar que nossa chateação com ele passasse pra nos engraçarmos em grande estilo. Estava como na música "pisando nesse chão devarinho" depois das mancadas que deu conosco. A voz e o rosto da Nina estavam ainda mais lindos do que na véspera mesmo com a internet dando pau. Depois que o Davi aceitou que consultaríamos uma a outra para verificar se qualquer saída ou ficada a dois não magoaria nenhuma de nós - afinal não pisar na bola não era o forte dele - não me contive: pedi um drink de café para comemorar. Os dois já queriam que fosse morar com eles. Ainda estava atordoada demais para responder. Mas a próxima curva perigosa e imprevista nesse roteiro seria obra minha.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Memórias afetivas da cozinha e suas lembranças engraçadas

Cozinhar pode ser uma meditação e prática criativa. Para hiperativos como eu, fazer uma receita costuma dar gastura: ela não precisa muito pra nos perdermos da atividade e o prato desandar com sucesso. Gosto porém do quanto fazer comida me obrigada a aterrar: tenho que ficar presente para quebrar a cabeça e ser criativa quando o produto ou medida que preciso não constam nos medidores caseiros. Outro dia me peguei um cálculo gastronômico que se um produto é mais denso, preciso de menos no medidor para dar os mililitros desejados ou me vi noutro questionamento filosófico culinário: coco tem menos ou mais gramas que farinha de aveia?
Nesse movimento compreendi porque de quando em vez não gosto do hiperfoco que preparar pratos demanda "porque a maioria precisa de reiki na panela ou no forno" - correndo risco de perder o preparo ao virar pro lado e checar o relógio.
Cozinhar é uma prática meio matemática: nos salgados os improvisos não nos fazem arruinar o preparo. Já nos doces... Adaptações costumam desandar cm tudo. Surpreendentemente com o bolo de beterraba da foto não foi assim: substituí o açúcar comum pelo demerara, trabalhei com margarina comum, só usei meia colher de sal e ficou bom.
Me lembrei quando fiz essa receita há uns anos e levei numa oficina do Grupo XIX de teatro, outro participante levantou a forma, perguntou quem fez e agradeceu. No fim, cozinhamos para resgatar memória afetiva (no caso, a última vez em que fiz teatro em grupo) ou produzir uma recordação que gere essas lembranças (como domingo em que comi guacamole com meu marido, que não curte abacate, mas essa receita mexicana que faço sim). Essas associações não são só minhas: uma prima do interior fez um livro não só com as receitas, mas com as histórias envolvendo as mesmas. Digamos que cozinhar não é uma arte meio "umbiguista" como contar história - no caso dessa última ainda me animo a criar só - no frigir dos ovos queremos mostrar o resultado para alguém, claro!
Na pegada de reinventar o conhecido e melhorar o resultado final, fiz uma cobertura que produziu novo álbum de memórias culinárias. Já tinha em mente os ingredientes com os quais fiz substituições da receita do site indexado na frase anterior. Quando procurei algo similar na internet e não encontrei, lembrei duma professora que diz que se não encontramos o livro que temos em mente, temos que escrevê-lo. Escrever é algo que tenho mais familiaridade, na cobertura fui mais atrevida porque coleciono fracassos gastronômicos. Mesmo assim reinventei a receita do hiperlink: a usei como base por ter sido a mais natureba que estava à mão no dia em que estava pré disposta a produções trabalhosas na cozinha. Trabalhei com açúcar mascavo, leite de coco e margarina nos lugares do açúcar e leite comuns e da manteiga. Como tem gordura mais saudável na produção, não engrossa até desgrudar do fundo, mas fica um pouco mais espessa - e com um paladar delicioso saudável na minha opinião.
O único senão é que não poder dividir uma comidinha que acertamos em quarentena dá uma dorzinha no coração. Nessas horas se improvisa como pode: enviei fotos pros amigos e família parafraseando Pink Floyd "how I wish/ how I wish you were here". Os puristas dirão que as redes sociais não produzem afeto igual os encontros reais. Certamente expressões diferentes de saudades proporcionarão reaproximações diferentes. Estas porém, já são um consolo e tanto atualmente!
Na esteira da surpresa na receita acertada, meus pais produziram um reencontro inesperado, no qual aproveitei para dar fatias do bolo para eles. Fui elogiada mais tarde - o que é raro para os dois, que sempre se divertiram apontando minhas presepadas. São eles aliás, os responsáveis pelas memórias mais tragicômicas que tenho de cozinha: quando criança comia bolo de cenoura com cobertura de Nescau e me enganavam que era bolo de chocolate. Levei uns aninhos para estranhar que na casa dos outros esse doce era marrom e na minha era amarelo. Dizem que era mais fácil enganar criança antigamente. Posso comprovar!

sábado, 16 de maio de 2020

Pra lá do apocalipse tupiniquim


A volta à vida não foi cheia de abraços como imaginei. Tínhamos nos adaptado tanto à prevenção, que
agora acenávamos cabeça, dávamos tchau, olhávamos simpaticamente, desenhávamos sorrisos nas máscaras e especialmente gingávamos para fugir de ameaças de abraço. Como os amigos fogueteiros previam, é inimaginável como retomaremos os beijos e ainda mais ressabiada a volta do sexo.
Ah, a internet. A dificuldade será desmamar desse vício. O mais improvável se ajustou ao online: dança, culinária e até a medicina. Ficamos ainda mais fora de ritmo: as plataformas de vídeo não dão conta de tanta demanda. Mas temos desenvolvido todo jogo de cintura que as grandes cidades nos furtaram. E por falar nas megalópoles, o trânsito delas foi algo que não deu a menor abstinência.
Do trabalho sentia falta. Da minha antiga experiência tive medo do horário de pico. O primeiro ônibus estava meio vazio, mas matérias e pesquisas indicavam que as vítimas da doença foram tantas que desincharam regiões populosas. Nas capitais vemos reflexo nas conduções mais livres. Me silenciei comovida. Já na segunda condução tive medo de abuso, uma tradição nos vagões metropolitanos. Mas peguei um trem com todos trabalhadores felicíssimos voltando do confinamento: cantavam, sambavam e até improvisavam versos. Me senti num “pagodão” e até batuquei num banco que me concederam. Na quarentena, me escondi nas trincheiras da cozinha demais e devo estar convincente como grávida – só pode! Sobreviver aos tempos pandêmicos diminui esses pequenos dramas. Faço percussão na janela também.
Chego à escola após sambar por estações. Os colegas estão tão animados com a volta que rola praticamente uma rave na sala de professores. Os hiperativos aprenderam a tocar agogô e bordar. Os militantes adaptaram seu engajamento para o ativismo virtual. E os deprês aumentaram as doses de tratamento. Em meio à social, agora com sonorização afro brasileira, chegaram os estudantes. Não tínhamos idéia de como seria. A princípio pareceu rever ex. Eles, com os cabelos em pé com sobrevivência e saúde. E nós, afogados em demandas de documentação que não dialogavam com a realidade deles. Sobreviventes se revendo. Quando fomos para a sala, tiveram curiosidade de experimentar o processo artístico que aprofundei em casa e divulguei online: artes corporais na quarentena. Cansados de tanto aguardar a gestão adaptar a escola para outras linguagens, sequestramos as cadeiras e mesas para o pátio e com elas fizemos uma instalação. Como era de se esperar, a gestão quis me matar. Mas pedia por isso há tanto tempo e agora com todo estudo acadêmico em dia, tinha referências de sobra para defender o projeto com os aprendizes. Nisso os professores seguiam os mesmos: “argumentadeiros”. Os estudantes? Improvisaram, criaram, apresentaram, foram criativos e se divertiram como se não houvesse amanhã. Nenhum de nós tinha como saber se haveria mesmo.
Voltei realizada e parei na academia. Por precaução tínhamos que fazer individualmente atividade aquática, com uma máscara de muitos buraquinhos fininhos e nuns horários malucos. Tive até saudade das colegas de turma barulhentas [suspiro]. Meditei e chorei em meio ao cloro.
Cheguei desnorteada de fome e pedi entrega de lanche num comércio local. Tanto tempo presos avariou irreversivelmente a economia. Começamos comprar tudo nos comerciantes pequenos do bairro. Eles agilizaram a entrega que não faziam. Há grandes redes dos mais diversos segmentos de varejo falindo ou estudando novos negócios. Deixou de fazer sentido conhecer restaurantes ou cinema distantes. E em cidades em que qualquer deslocamento demanda horas, depois de tanto interiorizar, agora só ficamos horas no transporte se morrer a mãe lá na outra região.
Ainda comia quando meu marido chegou do hospital. Nos serviços essenciais em não deram EPIs acontecem processos trabalhistas televisionados – a mídia ficou combativa. Perdemos muitos na linha de frente. Algumas mortes incomuns ajudam o avanço das pesquisas. Com todos países temendo o mesmo, há corrida pela vacina e oferta de prêmios científicos.
Uma música nos conforta e vamos à janela. Agora a arte está nelas, algumas até com cortinas chamativas, luzes e sonorização potentes. Os grupos se dividiram em vários artistas solo. Cochilamos ouvindo a apresentação.
Me alongo cedo. Toda expressão em grupo foi para praças, onde todos se distanciam para praticar. E de tanto ocupar as ruas, já não há mais medo!
Corro ao ensaio. O teatro ainda precisa de distanciamento: agora só apresentamos na rua. Medito voltando na derradeira condução. Depois de tanta preocupação, até os imprevisíveis se renderam ao auto cuidado digital. Vimos muitas lives, selecionamos e cada um acompanha suas preferidas.
Ainda navegando, minha irmã me escreve: viajará sozinha. Mochileiros viraram peregrinos independentes e quem temia caronas, depois desse pesadelo encara. É compreensível: uma solidariedade surpreendente emergiu da nossa ruína. Uma transmissão revela que a revolta dos principais impactados nisso tudo prendeu corruptos num navio turístico em nossa costa. Juízes exigem punições. Já o povo... Torce por eles!

terça-feira, 5 de maio de 2020

Descompasso febril

Como não tenho trabalho dos estudantes para pendurar... Penduro os meus! Não que seja uma artista visual digna de ocupar janelas, estante e portas, mesmo de casa - longe disso, aliás. Sou é atriz, das salas de aulas e espaços culturais, mas como o teatro é arte do encontro, enquanto temos que nos manter isolados, improviso: isso o palco me ensinou. E nesse jogo de cintura artístico crio mandalas, faço versos, gravo contações de histórias, produzo crônicas... Descubro que todas essas outras são artes do encontro: quando leitores ou expectadores dão retorno, sinto o peito transbordar de alegria. No mais, é tudo incerto e assustador, nada que conviva bem com uma mente inquieta. Para apaziguá-la, me movimento. Caminhando ou dançando despisto bem as pré-ocupações. Fazendo yoga e pilates, porém, meus pensamentos me sequestram, fora que minha respiração não sincroniza com as posturas e uma das professoras tem enviado aulas demandando acessórios inexistentes nesta casa - e com a perspectiva da economia degringolar que não os comprarei. São basicamente horas de prática para fugazes momentos compensadores de relaxamento.
Por razões auto explicativas, corro das notícias. Porém há temporadas em que só as manchetes ou os tuítes enxugando lives científicas já me viram de ponta cabeça. Nestas ocasiões preciso fazer chá da planta mais fedida para desligar porque o psicotrópico não deu conta. E o que daria em temporada de saudade dos estudantes, amigos e família? A arte, aposto eu, do alto do meu otimismo sagitariano. E surpreendentemente tenho criado até bastante e claro que no processo fico muito entregue e meditativa. Só que o isolamento resolveu se estender. Tipo visita que não avisa e depois a gente não aguenta mais fazer sala pra surpresa inconveniente. E nesta altura já me culpo por não produzir lives, projetos, coletâneas com minha inventividade. Não tenho ideia de onde vai parar a pulsão criativo-terapêutica. Só gostaria que os resultados não morressem na famigerada praia da quarentena. Como não dou conta de fazer mais barulho pelo que invento, termino angustiada.
Uma das atitudes mais iradas que tomei contra esse mal estar foi meditar. Aqui devo aos amigos budistas e de auto conhecimento um salve me desculpando porque realmente nosso espaço interno pacífico está sempre à nossa disposição. Não me sentava tão disciplinadamente antes não por falta de fé e sim pelo trabalho- família- frelas atropelarem nosso tempo livre. Respirar e focar nesse ponto interno apaziguador tem sido tão reconfortante, que minha mente tem se perguntado: o que te fiz que não me dava isso antes?
Antes... Éramos outros, já reparou? Perdia paciência, não tinha jogo de cintura com ligação e conferência. Agora a voz dos amigos, familiares quase faz chorar de alegria. E por falar em alegria, tento mantê-la vendo entretenimento online e desligando do pega pra capar lá de fora. Quando me empapuço de cultura de massa, tento sites ou vídeos artísticos. Faz bem, claro, mas em dias sombrios sentimos um pouco girar em falso.
Com a cabeça fervilhando, recorri aos estudos: quem sabe eles me levam para longe? Me vi transitando entre possíveis conteúdos da pós e do futuro mestrado, porém todos densos demais para me fazer aliviar o mal estar que me ronda há dias... Naveguei laptop adentro e fui pousar na literatura infantil. Sempre ela me fazendo sorrir. Mais que nunca é preciso batalhar pela resistência da alegria.. Só que de tempos em tempos... Queremos saber se a TPM nos espreita de tanto se arrastar pela casa. Vai passa, torcemos. Mas como administrar os estragos sutis até lá?

domingo, 3 de maio de 2020

Panela de afeto na soleira

A voz do sobrinho chegou pela janela, vinda da casa ao lado. Desde o começo do isolamento alegrias
como essas mudaram de tom. Ouvi-lo agora a entristecia: haviam decidido não se rever tanto quanto antes, pois parte dos parentes tinha grupo de risco em suas casas e nem todos podiam fazer a quarentena conforme recomendado por órgãos de saúde. Depois desse cuidado, a risada dele dava uma saudade incômoda. Tinha consciência do privilégio que dispunha: ter conseguido migrar seus compromissos para conferências no home office e seu companheiro passou pelo mesmo processo. Ainda não sentiam os temidos efeitos do confinamento na economia doméstica que atigiam outros colegas. Por isso mesmo evitava transformar a falta da família da irmã vizinha num drama de proporções exageradas. Mas nem por isso o buraco da ausência deles deixava de se fazer sentir periodicamente.
O casal produzia e ensinava arte. Quando sentiam falta de outras conversas que não as respondidas pela voz um do outro, pegavam carona em outras melodias - literalmente! - e se sentavam com seus instrumentos, embalados pelas canções alheias com as quais faziam cover terapêutico e acústico. Num desses "saraus de dois", cantaram algo sobre comida - um deles estava cozinhando, começou a cantarolar e o outro foi buscar seu instrumento e acompanhou. De algum modo a música ressoou na irmã, que começou deixar panelas com comidas que eles gostavam na soleira da porta de entrada, apertando a campainha na sequência e voltando para sua casa rapidamente.
Na primeira comidinha entregue, não encontraram só massa caseira, com molho de tomate e queijos frescos. Ambas lembraram - uma comendo e a outra limpando a bagunça de sua pia - das avós que tanto faziam encontros regados à culinária italiana. A que recebeu o prato amarradinho na porta, com guardanapo bordado à mão, até chorou comendo. O marido não estranhou toda aquela sensibilidade: percebia que quando pararam de ver os vizinhos com frequência, emoções antes toleradas agora vinham à tona e tinha se tornado comum conviver com a mulher mais à flor da pele. Ele também gostava de cozinhar e estava se deliciando com a forma da cunhada se mostrar presente pelos ingredientes.
Assim que as memórias os afetaram, os artistas voltaram à cozinha, inspirados. Um fez suco de fruta colhida do jardim e a outra, sobremesa com sabor de roça. Quando se deixaram atravessar pelos aromas e tudo ficou à contento das lembranças que os estimularam a produzir tudo aquilo, guardaram nas embalagens mais delicadas, amarraram com panos com ar de piquenique, foram deixar na porta da irmã, tocaram a campainha e deram no pé. Naquela tarde foi a cunhada e vizinha quem criou um ritual, colocou música, incenso, sentou para comer o presente da irmã e seu companheiro e... chorou!
Passaram o confinamento neste escambo de sabores, recordações, aromas e alquimia. Às vezes a cunhada aproveitava que o marido tinha que dar plantão e fazia uns horários malucos e encomendava ingrediente fresco da Zona Cerealista - ao contrário da vizinha, não tinha jardim e horta. Mas quando cheirava as especiarias diversas que chegavam da rua, tinha a criatividade e a generosidade ativadas, produzia um prato para comer gemendo e claro, presenteava a irmã e o cunhado.
Estes dois, por sua vez, deram para conversar com plantas, misturar folhas e frutas, trocar receitas pelas redes sociais e inventar moda entre a pia e o fogão. Sempre se surpreendiam com as novidades, lambiam os dedos, agradeciam aos amigos (entre eles já não era novidade o talento dos dois) e corriam ansiosos com a marmitinha do amor na soleira da mana na casa ao lado.
Nunca antes a vizinhança sentiu tantos aromas. Jamais os trabalhadores dos comércios locais tiveram tanta dó dos moradores das casas germinadas não se encontrar por tanto tempo. O sobrinho ouvia saudoso algumas crianças furando o isolamento, de máscara em suas bicicletas nas calçadas e espiava da janela, com a barriga afetuosamente preenchida pelos tios. E para os pequenos na rua, nunca o amiguinho do lado de lá do vidro e grade pareceu tão tristonho.
As folhas dos calendários demoraram a cair. Nem a cunhada, nem o casal artista conferiam mais o relógio com tanta ansiedade quanto no começo do confinamento. Ambas casas desligaram ou deixaram a TV no mudo. Por muito tempo, a trilha que enchia as cozinhas era o repertório dos artistas ou risada do sobrinho. As receitas da mãe e das avós, que sempre as registravam em cadernos amarelos, ao lado de histórias relacionadas aos pratos, foram a terapia e troca de afetos possível por meses. As ancestrais teriam ficado orgulhosas. Foram as recomendações e talento das matronas da família que as fizeram atravessar a quarentena, apartar a melancolia e riscar na agenda, uma a uma, as semanas que previam faltar para se rever. E não é que cozinhar é mesmo uma forma de amar?

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Do Meu Quintal Não Escuto a Rua

Direto do Pombal... e do meu cabelo retrô
Do lado de cá tenho vivido outro tempo
Sem buzinas, enchentes, constrangimentos
Tanto que já nem sei em que folha do calendário
O mundo de-sa-ce-le-rou... Até parar amarrotado
Do lado de um relógio sem corda
E pra ele dar a mão –  desde então, acumulam poeira

Do jardim em que caminho
Rumo a lugar nenhum
Ou do refúgio gelado
Em que invento moda
E sorrio para um filme inverossímil
A avenida do lado de lá não me perturba

E nessa migração do medo à contemplação
Da irritação ao isolamento
Da preocupação às descobertas animadoras
A dor no peito se liquefez
O sono se dilatou
As emoções e os pensamentos
Dançam ao som de O Dia em que a Terra Parou

Nessas semanas com ar de meses
Tive medo nos auto cuidados externos
Aproveitei minha inventidade
E improvisei como se estivesse no palco
Na programação mais engessada
Jogamos as toalhas e ganhamos respiro
Fui da criatividade ao bloqueio criativo
E cobrei do infinito que a iluminação viesse logo
Que não tenho a vida toda para atingir o Nirvana
Troquei o entretenimento por arte digital
Mas mesmo nos dias mais sem chão
Ainda ouvia pássaros, música e encontrava paz
Aqui dentro mesmo – quem diria?

Assisti tanto o maremoto quanto a calmaria
Com pipoca na mão como quem vê filme
Nenhum me atropelou
Os sopetões não me impedem de sorrir por dentro
Já que do meu quintal não escuto a rua.

Estranhei mas viciei nessa marola
Estão limei notícias
Quis acolher, colaborar e apoiar
Mas minha falta de ar abortou
Iniciativas ao vivo e a cores
Me vi meio de mãos atadas
Vibrando, escrevendo,  gravando
e... quem diria? Torcendo
Encarando a vulnerabilidade
E finalmente dormindo no mal estar dela

Do meu quintal a redução da marcha
Revelou que meu mal, quem diria,
Sempre foi meu pique sem freio
Sem os atravessamentos da rua
Vejo luzes sem poluição entardecerem
Minha sala colorida e étnica

Do meu quintal a economia
Dos desgastes cotidianos
Revela uma capivara à margem
Entre esgoto e mato abandonado

Do meu quintal as saudades
Dos amigos e parentes
E nossos reencontros
Eternamente adiados
Transformam a videoconferência
Na linguagem que reduz distâncias

Do meu quintal ouço pássaros novos
Entre o ribeirão e a comunidade
Me surpreendo com meus improvisos
Respiro e acho espaços internos
Nunca visitados

Do lado de dentro
Faço as pazes e corto relações
Com a tecnologia
Encontro e ofereço solidariedade
Caio de amores pelo entretenimento digital
Depois fujo para a arte analógica

Todos esses mergulhos e descobertas
Por não ouvir a rua
Do meu quintal.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

A paisagem meio borrada da bipolaridade mais eufórica

Fotinho retrô (moro num Pombal sem cobertura)
mas essa vivência no prédio do chefe no Piá
deve ser a única imagem zen no limbo do laptop
Sempre achei que se não fizesse uma quantidade insana de iniciativas, o mundo ia acabar amanhã. Depois de décadas de correria, insônia e exaustão, me vejo no isolamento, olho a janela, notícias ou relatos na internet e concluo: que petulante fui eu! Olhaí o mundo acabando e eu me movimentando e escrevendo. Estudando e respirando. Criando e vendo série ou filme raso pra desanuviar. Mas enfim: nada que o sistema nos convença como primordial.
Se bem que... No princípio tudo era o meme. Na terceira semana confinada descobri os conteúdos virtuais mais cabeça: site de museu, peça na Internet e página para olhar desconhecidos distantes um minuto nos olhos, criando pontes e desenvolvendo empatia. Apesar de serem conteúdos que reforçam meu lado cabeçudo, como resvalam na sensibilidade, acabo fazendo arte terapia informal.
E por falar em arte terapia... Já venho do teatro, literatura e contação de histórias, então, sou suspeita para falar, claro. Mas tenho me experimentado noutras frentes. Depois de acompanhar curiosa e incrédula o companheiro com quem vivo produzir mandalas, se curar e ensinar num espaço de convivência terapêutica que atende neuroatípicos, me arrisquei. Aprendendo distanciada com ele já ensinei nas escolas em que ensino artes para jovens e adultos - e eles, como era de se esperar, piraram! Mas vivenciar o desenho em formas redondas, harmônicas, com padrões equilibrados e conversando sobre ele depois, leva a um processamento de emoções com diferentes facilidades e dores. A mandala do que gostaria para quarentena fez com que notas musicais parecessem hebraico - a sincronicidade é que todos sobrenomes familiares são de judeus convertidos e sempre me confundiram com judia, muito embora seja mezo zen e mezo afro na espiritualidade. A da angústia foi uma sofrência começar, porém depois me concentrei feito presidiário chinês pra terminar - e saí com o corpo dolorido, mas os sentimentos menos turbulentos. Na do medo, os coronavírus viraram umas gelecas infantis ao redor do centro estrelado - quando criança, meus pingos nos is do meu nome também traziam estrelas. Na da tristeza, voltei à colagem, técnica que tenho uma paixão platônica por nunca ter estudado. E simbólico que justamente a da ansiedade tenha me dado um branco do que trabalhei nela - não sei se por esta emoção viver sendo varrida pra baixo do sotão interno... Parece badauê sem noção, mas de fato terminamos melhor - arte é feito meditação e acupuntura: mesmo que fizermos sem muito estudo formal, variando técnicas, com mestres guiando muito genericamente (ou levemente picaretas), no esquema capetalista industrial do convênio, ainda assim, focando em nosso espaço interno inabalável sempre disponível (ou centelha divina, buda interno, se preferir) sempre faz bem.
Criar é um processo que reverbera onde não imaginávamos. Também gravei vídeos narrativos. Só pensei em focar nos adultos, já que o mercado não admite, mas eles também precisam. Até os jovens, tão acusados de letargia pelas famílias e gestão, me pedem contações quando volto às salas. Obviamente que criança é tão esperta que também se trata, aprende e imagina para além da narrativa. E no último dei palhinha da formação - uma das atividades que mais me realizo, lidando com professores, assistentes sociais, educadores, bibliotecários, terapeutas, estudantes e psicólogos com vontade não só de aprender, mas de contar também. Nem só de três, dois, um... Ação! Se preenche uma quarentena. Voltei às postagens, comecei uma dramaturgia... No princípio imaginava produzir um diário. Mas as fichas, mudanças na relação com os sentimentos e olhares que transformo com emoções mais apaziguadas são tão reveladores, que passo um tempo maior burilando as mexidas do isolamento para por em palavras os insights. Às vezes, nem é aqui. É no papel mesmo porque como ex jornalista vintage, adoro um bloquinho e o cheiro deles.
Não caio de amores só por material impresso em branco. Tenho uma curiosidade e vontade de fazer cursos que não cabe em mim. A maturidade e a própria educação me ajudaram a focar - era isso ou uma porcentagem ínfima de aumento anual referente à inflação. Às vezes ainda namoro um curso nonsense na conjuntura atual: dublagem, roteiro, interpretação para cinema, pedagoginga ou pedagogia da encruzilhada. É quando uma remanescência dos pragmáticos dos meus pais que habita em mim cutuca minha mente inquieta: vai ganhar esse prêmio consolação aí até quando? Com esses chacoalhões da vida e da família, cheguei à segunda pós do teatro do oprimido/ psicologia social e ao programa Diversitas de estudos da diversidade, intolerância e conflitos da FFLCH/ USP. Sim,é muita cabeçudice pra uma arte educadora só. Mas ambas pesquisas nasceram das minhas práticas. Como alguém mão na massa, não daria conta de pesquisar só teoria. E como sempre batalhei por trabalhos significativos, o efeito colateral é que só estudo o que gosto. E pesquisar o que se adora vira auto conhecimento "faca de dois gumes" - nós já temos noção do que cicatriza cada dor, mas também há comprovação de que tudo que se conhece implica na perda de um paraíso. Em tempos de isolamento eu sei retrabalhar meus mal estar artisticamente, mas também desconfio que levar em consideração o contexto  que vivem meus estudantes ou colegas de trabalho trava lá no chão de escola quando procuramos ajudá-los de forma paupável. Além de nessa altura do campeonato desconfiar que a educação formal tenha me sequestrado o prazer de estudar porque descobrir interesses é meio viciante - como todo viciado que se preze, tenho abstinência de estudar por estudar, sem pagar de maníaca dos certificados.
Pra quem tem essa mente hiperativa os exercícios ajudam voltar ao corpo. Tenho caminhado onde moro e talvez pela 2a vez na vida, vejo surgir uma gratidão por viver aqui, já que os jardins e a distância ajudam não prejudicar o confinamento - além dos vizinhos se afastarem quando nos cruzamos, com tanto receio quanto eu com relação à Covid 19. Acesso vídeos de dança, tai chi, pilates, yoga e alguma live de dança, dependendo do humor e ânimo do dia. Suar me desacelera e uma das descobertas da quarentena seja de que dançar em casa não dá vergonha de ser descoordenada. Tenho exercitado também fazer 15, 30 min diários quando estou borocoxô feito semana passada.
Ainda é muita coisa? Para quem costuma viver no ritmo dum trem bala, passando por paisagens deslumbrantes, mas vendo tudo borrado é um baita avanço - vai por mim! Penso que se não estou afogada com filhos e trabalho feito amigas mãe ou num home office insano, posso passar esta temporada enxergando a ocasião como sabático sem grana, nem possibilidade de sair. O maravilhamento atual é que férias sem grana me emputeciam porque sou a sagitariana doida das viagens, mas no isolamento tenho curtido inventar o que fazer, intercalando com algum trabalho - com consciências de que é um privilégio e que com asma não posso ir pra linha de frente dos trabalhos solidários. Para quem é elétrica, inventar muita coisa é meio pinga: não conseguiria ficar só no sofá e acho falta de imaginação tédio entre privilegiados. Para minha personalidade e transtorno, fazer de cinco a três coisas em casa já é uma melhora inacreditável. Claro que não conto cozinhar ou arrumar o apê - isso não tem escapatória, mas já comemorei me mimar com comida na contramão do fast food, me diverti limpando altar, brinquei dando um tapa nos móveis e ainda fiz faxina pedagógica: é surreal não darmos conta da nossa limpeza, chamar a diarista que limpa o prédio e inaceitável que parece que sempre haverá quem precise disso. Em tempo: a paguei para não vir no começo, mas há perspectiva da verba minguar, não voltarmos e precisar de alguma reserva.
Brinquei quanto ao sabático, mas lá nos colégios nos demandaram planejamentos - que fizemos sobre nuvens, sem ideia de em que nos basear, já que não temos ideia do retorno, reposição ou como redesenharão o avariado calendário escolar. Também solicitaram atividades - para o site não deu certo, pois demandava direitos autorais, trabalho muito vídeo da internet e com alguns o levantamento disso complica. Mas as mandei para os alunos nos zaps das salas, com a intenção de propor mais arte terapia, já que estava mais ansiosos que nós e sem o que recorremos contra as perturbações do confinamento. Percebi que tinham dificuldade pra entrar na página da prefeitura, que só tinha exercícios escritos, imagine para o que programei, cheio de vídeos? Quando enviei o site do museu da região de ciências, com atividades na página, outra aprendiz quis saber o que aluno sem internet faz. Para educação pública, ensinar EAD é milagre de Fátima, não é viável na realidade em que as turmas vivem. Saio disso com gratidões que não lembro de ter conscientizado pela água, Internet, saneamento, não ter violência em casa, possibilidade do auto cuidado, pelos estudos possibilitarem me expressar e abrir minha mente, pela religiosidade não picareta me devolver a paz interior que o sistema me saqueou e - quem diria - até pela Netflix. Ok, parte do sistema às vezes é necessário.
Desconfio ainda que possa ainda voltar ao tratamento questionando se tenho mesmo bipolaridade mesmo.
Por hora, parafraseando a bíblia, que a ti te baste um questionamento por dia.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Na Tenda da Lua do Isolamento


Meu vizinho toca trombone. Pela primeira vez tenho achado tocante: um instrumento de sopro e seu proprietário resistindo à tristeza que chegou como brinde do isolamento. Antigamente tinha bode dele. Pensava que era devido aos gostos musicais diversos.  E quem me vê falando assim pensa que mudei a percepção há um baita tempo. Foi só desde a quarentena mesmo. Parece que só a impossibilidade de ligar na portaria e perguntar qual o apartamento eruditamente musical para entregar couvert artístico já nos aproxima. Talvez só o medo de adoecer ou perder um ente querido nos refresque a memória que na hora desse frio na espinha, estamos todos na mesma roubada.
Cruzei o prédio dele na caminhada para espantar a melancolia. O jardim que plantamos no conjunto em que moro permite que andemos sem tanta exposição. Os vizinhos também têm se distanciado nos encontros involuntários. E pela primeira vez sou grata à quebrada em que vivo. A raridade das saídas é tanta que tenho exercitado fortemente a imaginação, tentando fazer de conta que o córrego perto não carrega sofás, material de construção e esgoto. As andanças têm sido contemplativas. Não sei até que ponto ajudarão no condicionamento.
Não é só essa caminhada que virou um evento. Uma amiga de estudos enviou um vídeo em que a pessoa se montava para jogar o lixo, como quem vai à festa. Pensei que demoraria mais para chegar a esse ponto, mas estava praticamente negociando toda fast food restante para o marido me deixar escapulir rapidamente. Como tenho asma, ele tem se predisposto a resolver lá fora a maior parte das questões. Não subi no salto para ajudar a encher a lixeira, mas saí achando a rua linda, as árvores incríveis e as pessoas uma simpatia. Me senti como minha finada avó que elogiava todos os amigos e nomes de quem apresentávamos. Encontrei o jovem vizinho. Ficamos conversando como se tivessem saias de bailarinas entre nós, mantendo uma distância saudável e criativa. Nem sei se noutra ocasião prosearíamos tanto. Mas de repente as pessoas com as quais trocávamos cumprimentos secos, ao nos cruzarmos nos corredores nesta quarentena, se não fosse perigoso nos abraçaríamos empolgadamente. Lembrando do vírus, obviamente nos contemos.
E a saga na rua com rápidas saídas segue... Consegui barganhar uma escapadela com meu companheiro e fomos à feira semanal. Como descartei as últimas máscaras ganhas da dentista, improvisei proteção com uma bandana amarrada ao rosto. Soa meio bandida estilosa e também usava pra escrever na lousa sem falta de ar lá no trabalho. Antes do adiantamento do recesso, claro! Nunca um pastel na esquina foi tão empolgante! Aumentaram a distância dos clientes aos feirantes com faixas. E mesmo nas filas as pessoas não ficam mais no nosso cangote. Sentamos no banco da rua e vimos as luzes do shopping na cidade ao lado. Deve estar fechado. Sabemos que prevenimos riscos para nós e os outros, mas lembra as mais aterrorizantes séries distópicas.
Crio para despistar memórias audiovisuais que são gatilhos para deprê. A vizinha veio ajudar com as injeções do tratamento contra alergia de ácaro, para que pudesse fugir da farmácia. A agenda para meia dúzia de coisas que planejei fazer para não ficar ansiosa diminuiu. Conversamos tanto quando veio, que sugeri jantarmos quando o apocalise acabar. Será que só na periferia as pessoas se aproximam? Emocionalmente né: fisicamente damos passos pra trás.
Lá na escola a gestão também se preocupa e pede envio de exercícios, porém quando fui encaminhar no zap dos estudantes, vi que já estavam sem banda para as atividades do site da prefeitura, imagine para acessar meus vídeos de arte? As exclusões dos aprendizes são bem mais emmergenciais do que a rede de ensino dá conta. Para não voltar à angústia devido nossa limitação na ajuda possível, volto aos estudos. As aulas seguiram online, o que nos mantém ocupados, muito embora estranhando a simulação de normalidade das faculdades. Ao menos entre os nossos seguimos ensaiando sanidade... Nem que seja para compartilhar ignorâncias!.
No embalo dos meus desconhecimentos, vejo filme e série para fugir criativamente daqui ou repor as esperanças na humanidade, depende do dia. Em outras ocasiões falo sozinha na janela. Não pago mais de maluca: nas janelas da frente há outros tagarelas. Pena que minha câmera é ruim: daria um curta metragem e tanto! Inspirada pela criatividade que emerge, crio. O que me abastece do que tenho precisado nos últimos tempos:  expressão e terapia. Quando não é dia de imaginar que estou num divã com minha psicóloga na internet, respiro. Concentro em mantra, imagens, sonhos, velas. Mas respiro, deixo que as maluquices internas surjam e passem. E pela primeira vez na vida consigo me distanciar das emoções. Lapido os sentimentos para que sejam menos rústicos. E com isso parto para a próxima semana.