quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Querida Avó


Tenho sentido um chamado de te escrever. Evitei sem entender muito o porque das fugas. Talvez por não ter te conhecido. Por já ter partido. E não ter ideia de como dar palavra ao que não vivenciamos. Mas decidi descobrir como contatar você rascunhando. Porque? Bem na última faxina olhei novamente o porta retrato com meus outros avós e quis chorar. Ou porque comecei ler uma escritora negra que me lembrou outra feminista falar que provavelmente sou a primeira da minha geração a ter voz. Talvez escreva por você vó. Uma vez recebi uma chamada de reportagem sobre a vida sexual das avós. Corri. Por sempre ouvir que era autoritária, pouco participativa, bruta e indesejada. Será que foi assim contigo vó? Porque a lenda familiar dava conta de que era feliz com meu avô. O da foto. Por aqui, gerações depois já estamos na reparação histórica sexual.
Tem algo curiosos entre nossas conexões: você e o vô tinham nomes como os dos estudantes com os quais brinco, porque foram muito arrojados no batizado de todos. Seriam frutos de criatividade cabocla nos registros? Vô dizia tanto que éramos caboclo com caboclo que passei os últimos e recentes anos me embrenhando Brasil adentro. Achava que levantava a versão dos povos originários que sempre senti falta na escola. Mas fui atrás de mim vó. E me achei: nos chás das avós brejeiras das minhas primas. Nos causos ouvidos dos indígenas. Na noção de parentesco entre etnias deles. Na hospitalidade, comida sertaneja e dificuldades passadas pelos quilombolas. Levo o máximo possível para sala de aula vó.
Quero dividir sonhos: eu e meu companheiro sonhamos em fugir para o interior. Ele é descendente de nordestinos. Sei que vocês no interior sonhavam em fazer a vida aqui na cidade grande. Mas ela já detonou a saúde de todos nós. E acredito no que dizem os acolhedores mestres afro griô: "quando não sabemos para onde ir, temos que voltar para onde viemos". Para onde voltaria se fosse viva vó?
Lembrei que mãe e tias sempre lembram como choravam quando casavam e mudavam para longe da família de origem. Minha terapeuta conta de famílias em que a maioria não podia nem derrubar lágrima. Deve ser verdade que somos as primeiras a ter voz em gerações. É um pouco por isso que escrevo. A escritora que falei - Grada Kilomba - fala em seu livro/ tese que a pulsão de escrever vem da necessidade de ter voz, ser ouvida. O que você cochicharia ao pé do ouvido, próximas do fogão a lenha? Os sem terra urbanos do centro oeste me contaram do movimento das novas gerações - nós - a voltar pro sertão, interior... Sempre lembro da mãe contar como trabalhavam por comida, casa, móveis e cavalo nas fazendas do norte do Paraná. Talvez por não ter vivido isso, lembro mais forte dos cheiros de café, terra vermelha e chuva. A região nem tem mais esses aromas. Mas meu coração e nariz são apegados aos afetos em tons de sépia.
Por falar em fotos antigas tudo que conheci de você vó foi a foto em que segura minha mãe nos braços e está de joelhos, porque cegou temporariamente, fez promessa e voltou a ver. Por isso mãe tem nome da protetora da visão. Eu por um triz não ceguei também: as 7 cirurgias do glaucoma congênito, mais muitos colírios deixaram tudo sob controle. Esse vem e vai de questões oftalmológicas, sei lá só a psicanálise explica. Mas é gozado como tem qualquer coisa de simbólico nisso: vemos mais abusos eternos com dessossego que nossas antepassadas. Isso também é perturbador.
A saudade do meu viciante chão de escola também perturba. Não te contei? Estamos mais ou menos presos há seis meses por conta do risco de pegar Covid19. Dizem que vocês viveram outros outros sustos, por outras doenças. Não tem sido fácil: perdemos pessoas queridas, quando temos que sair tememos tudo e todos, pessoas que se amam há um semestre na mesma casa brigam por muito pouco... Talvez o clima mesmo da quarentena nos deixe saudosas. Sinto falta da piscina do Sesc (acredita que nadei com senhoras que comemoravam a viuvez que viviam?). Tenho saudade de fazer teatro sem intermediação de telas digitais.
Não dividi contigo né? Temos artistas em famílias e somos dos bons. Ouvimos que lá atrás alguns de nós éramos violeiros de moda caipira. Hoje em dia os que resistiram na trincheira das artes são do teatro. Só na base da criação para resistir a tudo isso.
E por falar em criação... De tanto querer e adiar te escrever lembrei da minissérie A Casa das Sete Mulheres. Acho que nesse movimento feminista e de círculo de mulheres entendo o que me encantava tanto nessa produção: elas também viviam aquele cotidiano doméstico sem muitas possibilidades. É a mesma razão do quanto me atraía, mas sofria com a personagem Ana Terra, do Érico Veríssimo, que enfrentava a mesma pasmaceira doméstica, mas sonhava com mais. Como talvez pode ter sido seu dia a dia vó.
Talvez por ser uma das primeira entre Machados, Duarte, Mendonça e Brandão a ter voz, te escrevo para contar que sinto muito por não ter ouvido a sua. Por todas as cartas à mão que dão saudade do cheiro paranaense serem do meu avô.
Espero que meus sonhos, lutas, ideais e escolhas não te decepcionem.
Te <3 sem nem entender.
Sua neta arteira, Fran