sábado, 8 de fevereiro de 2020

Uivando contra o Tempo

Foto Marília Apolonio/ Direção Juliana Sanches

A relação das mulheres com o tempo. É o que assistimos em A Corda Alice. Mas não só. As atrizes, que estiveram em cartaz por duas semanas no Teatro de Contêiner da Cia Mugunzá, no bairro paulistano da Luz, cantam, interagem com a plateia, se trocam, trabalham poeticamente com elementos de cena que remetem ao universo feminino, fazem as vigas do espaço de trapézio, tocam e contracenam liricamente entre a trupe. Ainda parece pouco para contar sobre o quanto ficamos orgulhosas de nossas vaginas ao ver o Acorda Coletivo em cena. As artistas partilham do que é ser mulher e ter o corpo atravessado pelo tempo, enquanto nos identificamos com as narrativas de cada uma. Nós somos o tempo ciclando: é um pouco o que sentimos com a encenação. Somos a que se preocupa com a mãe doente; as que fazem coisas demais, cuja relação com o tempo nunca se corrige; a que cismou que morreria cedo por isso entupia a agenda, mas venceu sua própria maldição com o correr dos anos; a que venceu doenças; a que sonhava conhecer o mundo; a que tem pés que não cabem em sapato algum; a que vive correndo; a que ama mulheres; a que canta doce e baixinho; a que cantarola Oração ao Tempo; a que se encanta com o que as crianças dizem; a que não pode brincar como queria por conta da família; a que encanou na 1a menstruação... Os ciclos nos reinventam, sempre e sempre! Uma plateia inteira de Alices. Puxando pela memória, já fui a que grila por não ter filhos noutra cena. Quando a ouvimos perturbada com a impressão de que todas se ocupam com  filhos, até perdi a fala ouvindo parte significativa da plateia discordar. Tentando como elas mapear o tempo me atravessando, é como se tivéssemos um pouco do relógio nos dando corda e muito dos ciclos nos transformando de dentro pra fora. Claro que o tempo também se imprime nos homens, mas talvez por eles não serem tolhidos desde sempre devido ao sexo, não se sentirem transformados a cada três ou quatro luas, nem serem cobrados para aumentar a família ou por envelhecerem, não os percebemos refletindo sobre a impossibilidade de parar os relógios. Quanto a nós... Sempre brinco que o corpo das mulheres parece público: uns cobram crianças, outros que pintemos o cabelo, há quem aposte que estamos em TPM (não temos o direito ao nervoso), nos acusam de sermos atiradas demais, de ser pouco femininas, muito gordas, magras, musculosas demais... Tentamos frear tanto as intromissões de como sermos, nos expressarmos, posicionarmos, vivermos que depois de alguns anos estamos respondendo aos latidos. E aí, apostam que estamos sem sexo. Por isso lava tanto a alma vermelha da gente ver as artistas interpretando cada olé que damos no machismo irônicas, cantantes, debochadas, encantadas, indignadas, engraçadas, provocativas, apaixonadas, dramáticas, angustiadas... Tantas faces de nós mesmas! É meio catártico e renovador conferir cenicamente dores que às vezes nos deixam cansadas de ser mulher num mundo em que não só o tempo, mas o machismo também nos atravessa. Embarcada nas fichas que o espetáculo faz cair, é contraditório lembrar que já tive fases bodeada de ser mulher, mas hoje em dia ver criativamente sobre nós em cena sempre me interessa! Também pauso o tempo vendo amigos da faculdade em cena: abro um espaço raro em São Paulo: ao final do espetáculo breco o relógio, espero o amigo, parabenizo, coloco as boas novas em dia, pergunto pelos nossos manos cênicos, esqueço do transporte encrencado para casa... A temporada de janeiro já foi, mas as artistas do Acorda Coletivo promovem uma rifa pra trazer o tempo feminino de volta à cena: sempre o trabalho colaborativo salvando o teatro independente, desde sempre! Aos que perderam as apresentações no começo do ano, é possível saber mais sobre os 21 prêmios, apoiá-las e estimular que voltem em cartaz aqui. Embarcando na memória de um tempo de férias, com noites para ver os irmãos teatrais, uma das frases entre as cenas que mais ficou tatuada em meus tímpanos foi "mulheres que gritam e retrocedem lâminas". Que possamos brecar muitas patriarcado afora, uivando como quem mantém o livro Mulheres que Correm com os Lobos na cabeceira de toda feminista rebelde que se preze.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Quando o árido chão de escola reencontra o místico auto conhecimento


A educação nos esgota tanto emocionalmente que depois de cinco anos num rebosteio socióloga-comunicadora-historiadora- artista me rendi ao privilegiado e sem noção auto conhecimento nestas férias. Depois de overdose de assédio, burocracia, brigas, constrangimento e disse-que-me-disse até uma ativista cabeçuda feito eu começou sentir falta de passar uma temporada out. E lá fui pras extraordinárias Minas Gerais, ficar rodeada de Serra da Mantiqueira por todos os lados. Até aí tudo bem: já tinha passado frio no sul mineiro no recesso de julho. Eu já vinha namorando a ideia de conhecer uma ecovila desde que soube do ENCA (Encontro Nacional das Comunidades Alternativas), que todas têm uma "cola" que as une e que a da que paquerava há tempos era arte e cultura. Até aí nada de novo sob o sol franciniano. Fui num festival cujo foco era performance e auto conhecimento. Pra quem vinha de um ano estudando performance no programa Diversitas da USP e já foi a rainha do retiro em tempos estressantes jornalísticos eram universos que pareciam não combinar, mas simbora! Teve dança, tantra, arte terapia, auto toque, expressão corporal, yoga orgástica, movimentos conscientes em espiral, roda de cura, jogos teatrais, cerimônia do cacau, pompoarismo, massagem, jantar às cegas, mantras na fogueira, meditação ativa, mindfullness... Qualquer pessoa menos aérea teria desconfiado que era demais pra seis dias. Mas não uma meio bipolar meio TDHA (ainda que estabilizada, enfiar o pé na jaca sempre me empurra pra fora do centro). Me atraí justamente pela diversidade: não devia fazer retiro há 8 anos, já mataria saudade de tudo numa tacada só. Lição 1: não eleja algo pras horas vagas se a característica principal é algo que tem e te faz sofrer. No caso, dei corda pra minha euforia que perde o pé fácil, porque no começo ninguém acha que está mal na extrema empolgação, nós temos certeza que somos "imparáveis" e não temos que descansar como o resto dos mortais. E caímos nisso repetidamente. No caso há um detalhe relevante: estava estável de tudo que trato, mesmo assim não parei de tomar nada lá. Nas primeiras noites dormia perto do salão de eventos, quer dizer, tinha insônia porque participantes faziam rave haribô que me acordava. Há algumas férias percebo que não dou mais conta de quarto coletivo, de esquema comunitário, popular, democrático ou troca se me custará a sáude e restauro sagrado necessário na entressafra workaholic. Mas sou a doida das viagens, descanso mais na educação do que fazia no jornalismo, quem resiste não? Lição 2: se há compras importantes e emergenciais a se fazer, são protetores de ouvido e máscaras de relaxamento pros olhos. Lá para o segundo dia acordei de madruga e entrei numa pira de que morreria ou enlouqueceria, o que o pessoal faria com uma doida ou defunta? Louvado seja Buda que tínhamos feito meditação da atenção plena, então fiquei proseando internamente com minha maluquice até desligá-la, mas cortei um dobrado pra dar olé nela viu? No outro dia mega desabafei com uma das organizadoras, pedi help e abri o coração. Ela achou que falar daquilo já me curava. A produção oferecia uma escuta ativa se alguém precisava, mas acho que é como já avaliaram no meu retorno: nós abrimos vários processos e não encerramos a maioria, então alguns demônios internos saindo do armário cutucam nossa gastrite. Na volta, num terreiro desabafei pra um preta velha que sempre fazia isso no jornalismo, não me moía como agora olhar tanto internamente na educação. Me senti com uma avó muito acolhedora porque deitei no colo dela e a entidade acreditou que já dei uma amadurecida e o que passava antigamente sem estragos mudou atualmente devido ao meu processo de me conhecer mais. Bom, penso que a maturidade me ajudou lá também: teve dias em que me permiti respiros específicos que o corpo pedia, deitava, chochilava ou ficava na rede enquanto vários enfiavam o pé na jaca na programação mais hiperativa que eu. Lição 3: me ouvir não tem contraindicação. Apesar do que dividi com amigas, que tinha memórias bem deprês do que conheceram no tantra, lá essa vivência foi uma das menos força amizade que conheci, mas com tanta atividade, parecia nossa pegada jornalística: um pouco de tudo, muito de nada. Uma arte terapeuta trouxe dinâmicas inspiradas na abordagem duma bailarina, que propõem desenhos, troca entre pequenos grupos e um auxiliar o outro no que quer, vendo quais recursos tem e desenhando quais potências podem ajudar. Minhas parceiras na atividade propuseram massagear meu pé, na hora pensei nisso, mas não deu tempo de pedir, depois lembrei da minha mãe que me fazia isso criança, fiquei sensível e fui acolhida. A turma de retiro tende a ser mais mãezona que o povo da militância (não me batam com bandeiras ativistas rs). Do que fizemos introdutoriamente relacionado à sexualidade feminina, pequenas mudanças já tem mostrado que as facilitadoras tinham razão: somos portais pro prazer da terra (é, a linguagem da turma não é muito certeira, mas tudo bem, sou prolixa). Quando tivemos que dar uma palavra para o que experimentamos numa grama, a minha era picada. Fizemos uma caminhada explorando os sentidos, sendo guiados e depois guiando pela montanha numa espécie de mistura entre jogos teatrais e vivências griô que fiz noutros cursos e viagens. Na roda de cura, pra variar, o xamã começa a bater tambor e já me vejo na floresta: enxerguei ansiã índia, canoas, rios, árvores fechadas, fachos de luz e depois não a vi mais. Trocando com ele depois, achamos que morri afogada noutra vida porque sigo num cagaço infinito quando não conheço a profundidade da água. Mas ele foi lá me trazer de volta quando "estava no meio da selva". Na troca de jogos lúdicos percebi o quanto a arte que estudo, exploro, vivo e ensino tem a ver com esse universo "podicrê". O maluco é que eles nos incentivavam a propor atividades nossas no Open Space. Eu só olhava a programação e me perguntava: em que espaço meu povo? Mas também na minha síndrome de super mulher sugeri umas dinâmicas narrativas (que não couberam, mas era previsível que não tinha espaço). A alimentação merece uma lembrança à parte: só havia opções veganas e vegetarianas. Meu paladar as prefere, mas com tanta atividade corporal, passei uma semana com fome, junto com sono, dei uma boa irritada no meio duma paisagem e tanto. Lição 4: alimentação levíssima ainda não é pro meu metabolismo "sortudo" acelerado irritadiço. Devo confessar que ao comer de olhos vendados, minha mesa causou rindo e se divertindo. E que dei uma militada básica na roda do sagrado feminino (virei a ativista das rodas badauê). Foi só sofrência? Claro que não. As pessoas são inspiradoras. A programação fez relembrar, ficar curiosa e cair de amores por várias propostas e pessoas. Minas é tão linda que ao pararmos para fazer No 1 na estrada, acho que nunca fiz xixi com um cenário tão incrível. Uma das meditações dançantes já tinha feito, mas esqueci e foi incrível recordá-la porque é certeira contra insônia. Fora que começamos tomando banho de cachoeira e terminamos na chuva sem roupa, chutando água uns nos outros e rolando no barro. Penso que é bem simbólico começar o ano novo arriscando fazer o novo. Mas sei que é mais simples pra ator, com 20 anos de treinamento em trocas coletivas num único camarim das coxias. Minha família também ajuda com suas relações corporais desencanadas. Achei ainda simbólico ter feito uma ponte com a viagem griô do começo do ano passado, porque a professora de lá tinha razão: a vivência está muito acima de escrever ou fotografar algo. Então claro que quando cheguei foi DR até duas da madruga. Tive que fazer uma leva igualmente intensa de auto cuidado pra dar conta dos processos abertos causando em paralelo. Depois vi que com tanta experimentação e vivência, não dá pra dizer qual funciona mais se só tiver agenda e bolso pra pouco. Acho que um dos baques mais significativos é voltar e se ligar que não dá pra por em prática a maioria do que se descobre lá. Porque como diria uma amiga, o povo é bruto! E o que tenho percebido nestas temporadas estudando o que amo, é que além da pesquisa virar auto conhecimento, fica também perturbador não naturalizar o que nem reparávamos antes. Passei a maior parte do retiro sentindo falta de negro experienciando aquilo. Quando chegou uma, fiz festa, mas ela ficou com parente na cozinha. A gente não leva mais estas discrepâncias de boa. Que bom! Mas ao mesmo tempo, que desconcertante. Depois que voltei terapia, escrita, tratamento, amigos, arte, estudo, mais um pouco de auto conhecimento perturbador, entre outras paradas viáveis no contexto urbano foram ajudando a processar tudo. Só não sei se quando a gente olha pra si tem que virar tudo do avesso, chacoalhar e pendurar no varal sabe? Talvez possa me lavar como uma roupa delicada...