sábado, 16 de maio de 2020

Pra lá do apocalipse tupiniquim


A volta à vida não foi cheia de abraços como imaginei. Tínhamos nos adaptado tanto à prevenção, que
agora acenávamos cabeça, dávamos tchau, olhávamos simpaticamente, desenhávamos sorrisos nas máscaras e especialmente gingávamos para fugir de ameaças de abraço. Como os amigos fogueteiros previam, é inimaginável como retomaremos os beijos e ainda mais ressabiada a volta do sexo.
Ah, a internet. A dificuldade será desmamar desse vício. O mais improvável se ajustou ao online: dança, culinária e até a medicina. Ficamos ainda mais fora de ritmo: as plataformas de vídeo não dão conta de tanta demanda. Mas temos desenvolvido todo jogo de cintura que as grandes cidades nos furtaram. E por falar nas megalópoles, o trânsito delas foi algo que não deu a menor abstinência.
Do trabalho sentia falta. Da minha antiga experiência tive medo do horário de pico. O primeiro ônibus estava meio vazio, mas matérias e pesquisas indicavam que as vítimas da doença foram tantas que desincharam regiões populosas. Nas capitais vemos reflexo nas conduções mais livres. Me silenciei comovida. Já na segunda condução tive medo de abuso, uma tradição nos vagões metropolitanos. Mas peguei um trem com todos trabalhadores felicíssimos voltando do confinamento: cantavam, sambavam e até improvisavam versos. Me senti num “pagodão” e até batuquei num banco que me concederam. Na quarentena, me escondi nas trincheiras da cozinha demais e devo estar convincente como grávida – só pode! Sobreviver aos tempos pandêmicos diminui esses pequenos dramas. Faço percussão na janela também.
Chego à escola após sambar por estações. Os colegas estão tão animados com a volta que rola praticamente uma rave na sala de professores. Os hiperativos aprenderam a tocar agogô e bordar. Os militantes adaptaram seu engajamento para o ativismo virtual. E os deprês aumentaram as doses de tratamento. Em meio à social, agora com sonorização afro brasileira, chegaram os estudantes. Não tínhamos idéia de como seria. A princípio pareceu rever ex. Eles, com os cabelos em pé com sobrevivência e saúde. E nós, afogados em demandas de documentação que não dialogavam com a realidade deles. Sobreviventes se revendo. Quando fomos para a sala, tiveram curiosidade de experimentar o processo artístico que aprofundei em casa e divulguei online: artes corporais na quarentena. Cansados de tanto aguardar a gestão adaptar a escola para outras linguagens, sequestramos as cadeiras e mesas para o pátio e com elas fizemos uma instalação. Como era de se esperar, a gestão quis me matar. Mas pedia por isso há tanto tempo e agora com todo estudo acadêmico em dia, tinha referências de sobra para defender o projeto com os aprendizes. Nisso os professores seguiam os mesmos: “argumentadeiros”. Os estudantes? Improvisaram, criaram, apresentaram, foram criativos e se divertiram como se não houvesse amanhã. Nenhum de nós tinha como saber se haveria mesmo.
Voltei realizada e parei na academia. Por precaução tínhamos que fazer individualmente atividade aquática, com uma máscara de muitos buraquinhos fininhos e nuns horários malucos. Tive até saudade das colegas de turma barulhentas [suspiro]. Meditei e chorei em meio ao cloro.
Cheguei desnorteada de fome e pedi entrega de lanche num comércio local. Tanto tempo presos avariou irreversivelmente a economia. Começamos comprar tudo nos comerciantes pequenos do bairro. Eles agilizaram a entrega que não faziam. Há grandes redes dos mais diversos segmentos de varejo falindo ou estudando novos negócios. Deixou de fazer sentido conhecer restaurantes ou cinema distantes. E em cidades em que qualquer deslocamento demanda horas, depois de tanto interiorizar, agora só ficamos horas no transporte se morrer a mãe lá na outra região.
Ainda comia quando meu marido chegou do hospital. Nos serviços essenciais em não deram EPIs acontecem processos trabalhistas televisionados – a mídia ficou combativa. Perdemos muitos na linha de frente. Algumas mortes incomuns ajudam o avanço das pesquisas. Com todos países temendo o mesmo, há corrida pela vacina e oferta de prêmios científicos.
Uma música nos conforta e vamos à janela. Agora a arte está nelas, algumas até com cortinas chamativas, luzes e sonorização potentes. Os grupos se dividiram em vários artistas solo. Cochilamos ouvindo a apresentação.
Me alongo cedo. Toda expressão em grupo foi para praças, onde todos se distanciam para praticar. E de tanto ocupar as ruas, já não há mais medo!
Corro ao ensaio. O teatro ainda precisa de distanciamento: agora só apresentamos na rua. Medito voltando na derradeira condução. Depois de tanta preocupação, até os imprevisíveis se renderam ao auto cuidado digital. Vimos muitas lives, selecionamos e cada um acompanha suas preferidas.
Ainda navegando, minha irmã me escreve: viajará sozinha. Mochileiros viraram peregrinos independentes e quem temia caronas, depois desse pesadelo encara. É compreensível: uma solidariedade surpreendente emergiu da nossa ruína. Uma transmissão revela que a revolta dos principais impactados nisso tudo prendeu corruptos num navio turístico em nossa costa. Juízes exigem punições. Já o povo... Torce por eles!

terça-feira, 5 de maio de 2020

Descompasso febril

Como não tenho trabalho dos estudantes para pendurar... Penduro os meus! Não que seja uma artista visual digna de ocupar janelas, estante e portas, mesmo de casa - longe disso, aliás. Sou é atriz, das salas de aulas e espaços culturais, mas como o teatro é arte do encontro, enquanto temos que nos manter isolados, improviso: isso o palco me ensinou. E nesse jogo de cintura artístico crio mandalas, faço versos, gravo contações de histórias, produzo crônicas... Descubro que todas essas outras são artes do encontro: quando leitores ou expectadores dão retorno, sinto o peito transbordar de alegria. No mais, é tudo incerto e assustador, nada que conviva bem com uma mente inquieta. Para apaziguá-la, me movimento. Caminhando ou dançando despisto bem as pré-ocupações. Fazendo yoga e pilates, porém, meus pensamentos me sequestram, fora que minha respiração não sincroniza com as posturas e uma das professoras tem enviado aulas demandando acessórios inexistentes nesta casa - e com a perspectiva da economia degringolar que não os comprarei. São basicamente horas de prática para fugazes momentos compensadores de relaxamento.
Por razões auto explicativas, corro das notícias. Porém há temporadas em que só as manchetes ou os tuítes enxugando lives científicas já me viram de ponta cabeça. Nestas ocasiões preciso fazer chá da planta mais fedida para desligar porque o psicotrópico não deu conta. E o que daria em temporada de saudade dos estudantes, amigos e família? A arte, aposto eu, do alto do meu otimismo sagitariano. E surpreendentemente tenho criado até bastante e claro que no processo fico muito entregue e meditativa. Só que o isolamento resolveu se estender. Tipo visita que não avisa e depois a gente não aguenta mais fazer sala pra surpresa inconveniente. E nesta altura já me culpo por não produzir lives, projetos, coletâneas com minha inventividade. Não tenho ideia de onde vai parar a pulsão criativo-terapêutica. Só gostaria que os resultados não morressem na famigerada praia da quarentena. Como não dou conta de fazer mais barulho pelo que invento, termino angustiada.
Uma das atitudes mais iradas que tomei contra esse mal estar foi meditar. Aqui devo aos amigos budistas e de auto conhecimento um salve me desculpando porque realmente nosso espaço interno pacífico está sempre à nossa disposição. Não me sentava tão disciplinadamente antes não por falta de fé e sim pelo trabalho- família- frelas atropelarem nosso tempo livre. Respirar e focar nesse ponto interno apaziguador tem sido tão reconfortante, que minha mente tem se perguntado: o que te fiz que não me dava isso antes?
Antes... Éramos outros, já reparou? Perdia paciência, não tinha jogo de cintura com ligação e conferência. Agora a voz dos amigos, familiares quase faz chorar de alegria. E por falar em alegria, tento mantê-la vendo entretenimento online e desligando do pega pra capar lá de fora. Quando me empapuço de cultura de massa, tento sites ou vídeos artísticos. Faz bem, claro, mas em dias sombrios sentimos um pouco girar em falso.
Com a cabeça fervilhando, recorri aos estudos: quem sabe eles me levam para longe? Me vi transitando entre possíveis conteúdos da pós e do futuro mestrado, porém todos densos demais para me fazer aliviar o mal estar que me ronda há dias... Naveguei laptop adentro e fui pousar na literatura infantil. Sempre ela me fazendo sorrir. Mais que nunca é preciso batalhar pela resistência da alegria.. Só que de tempos em tempos... Queremos saber se a TPM nos espreita de tanto se arrastar pela casa. Vai passa, torcemos. Mas como administrar os estragos sutis até lá?

domingo, 3 de maio de 2020

Panela de afeto na soleira

A voz do sobrinho chegou pela janela, vinda da casa ao lado. Desde o começo do isolamento alegrias
como essas mudaram de tom. Ouvi-lo agora a entristecia: haviam decidido não se rever tanto quanto antes, pois parte dos parentes tinha grupo de risco em suas casas e nem todos podiam fazer a quarentena conforme recomendado por órgãos de saúde. Depois desse cuidado, a risada dele dava uma saudade incômoda. Tinha consciência do privilégio que dispunha: ter conseguido migrar seus compromissos para conferências no home office e seu companheiro passou pelo mesmo processo. Ainda não sentiam os temidos efeitos do confinamento na economia doméstica que atigiam outros colegas. Por isso mesmo evitava transformar a falta da família da irmã vizinha num drama de proporções exageradas. Mas nem por isso o buraco da ausência deles deixava de se fazer sentir periodicamente.
O casal produzia e ensinava arte. Quando sentiam falta de outras conversas que não as respondidas pela voz um do outro, pegavam carona em outras melodias - literalmente! - e se sentavam com seus instrumentos, embalados pelas canções alheias com as quais faziam cover terapêutico e acústico. Num desses "saraus de dois", cantaram algo sobre comida - um deles estava cozinhando, começou a cantarolar e o outro foi buscar seu instrumento e acompanhou. De algum modo a música ressoou na irmã, que começou deixar panelas com comidas que eles gostavam na soleira da porta de entrada, apertando a campainha na sequência e voltando para sua casa rapidamente.
Na primeira comidinha entregue, não encontraram só massa caseira, com molho de tomate e queijos frescos. Ambas lembraram - uma comendo e a outra limpando a bagunça de sua pia - das avós que tanto faziam encontros regados à culinária italiana. A que recebeu o prato amarradinho na porta, com guardanapo bordado à mão, até chorou comendo. O marido não estranhou toda aquela sensibilidade: percebia que quando pararam de ver os vizinhos com frequência, emoções antes toleradas agora vinham à tona e tinha se tornado comum conviver com a mulher mais à flor da pele. Ele também gostava de cozinhar e estava se deliciando com a forma da cunhada se mostrar presente pelos ingredientes.
Assim que as memórias os afetaram, os artistas voltaram à cozinha, inspirados. Um fez suco de fruta colhida do jardim e a outra, sobremesa com sabor de roça. Quando se deixaram atravessar pelos aromas e tudo ficou à contento das lembranças que os estimularam a produzir tudo aquilo, guardaram nas embalagens mais delicadas, amarraram com panos com ar de piquenique, foram deixar na porta da irmã, tocaram a campainha e deram no pé. Naquela tarde foi a cunhada e vizinha quem criou um ritual, colocou música, incenso, sentou para comer o presente da irmã e seu companheiro e... chorou!
Passaram o confinamento neste escambo de sabores, recordações, aromas e alquimia. Às vezes a cunhada aproveitava que o marido tinha que dar plantão e fazia uns horários malucos e encomendava ingrediente fresco da Zona Cerealista - ao contrário da vizinha, não tinha jardim e horta. Mas quando cheirava as especiarias diversas que chegavam da rua, tinha a criatividade e a generosidade ativadas, produzia um prato para comer gemendo e claro, presenteava a irmã e o cunhado.
Estes dois, por sua vez, deram para conversar com plantas, misturar folhas e frutas, trocar receitas pelas redes sociais e inventar moda entre a pia e o fogão. Sempre se surpreendiam com as novidades, lambiam os dedos, agradeciam aos amigos (entre eles já não era novidade o talento dos dois) e corriam ansiosos com a marmitinha do amor na soleira da mana na casa ao lado.
Nunca antes a vizinhança sentiu tantos aromas. Jamais os trabalhadores dos comércios locais tiveram tanta dó dos moradores das casas germinadas não se encontrar por tanto tempo. O sobrinho ouvia saudoso algumas crianças furando o isolamento, de máscara em suas bicicletas nas calçadas e espiava da janela, com a barriga afetuosamente preenchida pelos tios. E para os pequenos na rua, nunca o amiguinho do lado de lá do vidro e grade pareceu tão tristonho.
As folhas dos calendários demoraram a cair. Nem a cunhada, nem o casal artista conferiam mais o relógio com tanta ansiedade quanto no começo do confinamento. Ambas casas desligaram ou deixaram a TV no mudo. Por muito tempo, a trilha que enchia as cozinhas era o repertório dos artistas ou risada do sobrinho. As receitas da mãe e das avós, que sempre as registravam em cadernos amarelos, ao lado de histórias relacionadas aos pratos, foram a terapia e troca de afetos possível por meses. As ancestrais teriam ficado orgulhosas. Foram as recomendações e talento das matronas da família que as fizeram atravessar a quarentena, apartar a melancolia e riscar na agenda, uma a uma, as semanas que previam faltar para se rever. E não é que cozinhar é mesmo uma forma de amar?