sábado, 28 de março de 2020

Semanário do Desaceleramento

Quando o fim do mundo começou, lembro de chegar ao trabalho questionando se era isso: então
tínhamos estudado, trabalhado, amado e protestado tanto para chegar nesse ponto? Evitar contato, sair e...
- Não vão ao fluxo: ou vocês descerão até o chão e nem voltarão mais!
Fim da linha: tocar os alunos ainda não convencidos do perigo do novo vírus.
Como nós devíamos fazer: vazar.
Mas levou um tempo para a alta cúpula se convencer com relação a nossa preservação.
Na divulgação oficial dos vulneráveis que deviam já ficar em casa eu não constava: idosos, grávidas e doentes auto imunes.
Já na lista paralela dos familiares, amigos e amor pedindo precaução estava lá como grupo de risco: asmática.
E lá fui eu no alergista levantar comprovação para não ficar pegando condução cheia.
A sensação que me dava é que todos atestados entregues nos últimos cinco anos devido à falta de ar tinham parado na lista de papeis para rascunho.
Na semana anterior ao isolamento, repeti várias vezes a via sacra médico-laboratório-mercado-farmácia-escola.tentando por tudo em ordem para me aquietar em casa. Surtei até achar remédio na 8a farmácia e precisar assinar mais papel na escola (mas devo confessar que achei que a condução e farmácia de Alto Custo precisavam duma pandemia pra não ficar com gente saindo pelo ladrão, as deusas que me perdõem).
Nessas horas me sinto meio como o personagem Joseph K do livro O Processo de Kafka: charfurdando na burocracia opressora, sem conseguir nadar contra a maré.
Entre um vai e vem e outro, tive picos ansiosos por não poder sair e ver os amigos e família. Levou um tempinho pra me tocar que já fazemos isso muito pouco em São Paulo. Depois grilei com o corte do adicional noturno, porque salário de professora cobre o que precisa e olha lá. Consegui, inesperadamente, praticar o que vários amigos zen badauê recomendam: se meu nervoso não resolve, passo mal à toa, se resolve, como direcionar essa energia para dar jeito no que precisa ser feito? Acabei chegando à conclusão que se o mundo vai acabar, não terminará comigo subindo pelas paredes. Também estressei por não ir mais à academia. E não é que estou me exercitando mais em casa? Sinto falta da piscina, é lógico, mas a gente se adapta a tudo quando tem condições de viver e não se batalha por sobreviver.
Pois é. Isolamento social também tem dessas: me saí melhor quieta aqui no meu cafofo do que correndo atrás do que precisava por em ordem pra me trancar. Descobri - pasme! - que o problema não é minha genética, nervoso, ansiedade ou ancestralidade nervosa, como sempre ouvi. É a sociedade que nos adoece. No apê tenho conseguido me movimentar pra ficar em paz nesse corpo, meditar pra ficar numa boa com essa cabeça, estudar (e confirmar que é trabalho mesmo pois saio da pós e do mestrado online doida pra deitar), criar (sejam vídeos, textos ou mandalas) e ver (filmes, séries, curta... Depende do tempo que sobra). E é só! Pois também acho que esse movimento "vamos escalar o Everest em quarentena não deixa absorver a lição que só chegamos à situação atual por produzir demais. É preciso menos - consumo, produção, aceleramento...
Imagino que até o fim vá me estressar, porque nosso estado de espírito é fugidio. Mas estava há meses com dor no peito de angústia. Só que respirando NAQUELE mal estar apertando o peito... Fui soltando o coração apertado. Os zen noção, com os quais brigo de vez em sempre, têm razão: há um espaço de bem estar dentro de nós, disponível para nos apaziguar, só precisamos abrir um respiro pra meditar.
Ninguém precisa me falar: sei que isso tudo é possível porque sou branca, mais ou menos classe média, tenho um trabalho razoável que dá suas escorregadas, mas também não me enfiará a faca e o cabo na minha conta, meu companheiro me ajuda por saber que com a asma qualquer probleminha virará um problemão, por estudar o que gosto, que acaba virando autoconhecimento e indiretamente nos transformando também e meu lado artista me estimula e cura.
Mas à despeito do privilégio todo, toda hora lembro de mais algum grupo sem condições de se isolar, tratar, cuidar e prevenir e fico mal. Ou leio chamadas de notícias sensacionalistas e deprimo. Mas é por isso mesmo que estou recorrendo aos escapes acima. Posso fazer mais algo? Quando a diarista me procurou, paguei adiantado, mas pedi que só venha quando melhorar o estado de calamidade pública. E é isso, sobrou real na conta, com as futuras quedas no salário já não poderei continuar esse esquema. Com essas fichas caem, fico mal.
Nessas horas ando uma horazinha. E agradeço meu privilégio de morar entre tanto jardim, de forma que não encontro muita gente e os que eventualmente vejo estão como eu: atravessando a rua pra conter a vontade de cumprimentar mais próximo. Nesse ponto, engraçado!, novos companheiros são descobertos. Vizinhos que não tive oportunidade de mais prosa já me ajudaram com o tratamento da asma, assim, não vou à farmácia. Estamos agitando jantar juntos quando este inferno acabar. Minha gastrite nervosa que dava buraco no estômago a cada uma hora depois de cruzar a cidade, deu uma trégua. Não só estou comendo feito gente como também em intervalos maiores. E por falar em intervalo como o tempo rende fazendo tudo online, sem horas e horas de condução! Também sem preocupação com ela, uso qualquer roupa que quiser porque não serei assediada.
Pensando bem, o enrosco talvez será o retorno. E desconfiando disso, fico mal por estar bem aqui, longe demais de tudo, como diria a música.