sexta-feira, 31 de maio de 2019

Pedagogia e teatro dos oprimidos

Esta semana a aula da matéria O Lugar das Performances, que faço no programa Diversitas da FFLCH/ USP no teatro do Faroeste foi na rua. Fomos à manifestação contra os cortes na educação. Não encontrei os amigos professores e jornalista com quem falei antes de chegar e quase voltei. Mas devido à curiosidade que vem comigo desde o jornalismo fui espiar a av. Rebouças, já que os manifestantes iam do Largo da Batata, em Pinheiros à Paulista. A avenida estava tomada! Me animei e subi com estudantes, professores e ativistas. Entre gritos de guerra, palmas, bandeiras, estandartes e percussão me senti muito em casa. No meio do caminho projetaram Paulo Freire num dos prédios e fiquei pensando: que tempos são esses em que temos que desenhar o que defendia o patrono da educação para colegas da área, que parecem ter entrado de gaiato no navio? Sim, tivemos uma discussão no trabalho há um tempo razoável porque levaram um trecho dele para leitura, mas na discussão tivemos que ouvir o oposto do que ele acreditava. Aquelas reuniões das quais saímos mais nervosas que entramos. Tem fase da vida em que o conhecimento é perturbador... Mas ao mesmo tempo pesquisar, assistir explicações, mergulhas em vivências que nos afetam é um auto conhecimento muito transformador. Sempre tive a impressão de ter mais vontade de estudar arte que educação. O olhar meio lógico da pedagogia em cima das documentações que nos perseguem me faz fugir de estudos focados demais no educativo. Por essas e outras estou há uns três meses como aluna especial do Diversitas para futuramente fazer mestrado. Tinha entrado por indicação duma amiga da pedagogia griô, imaginando seguir estudando as narrativas das vlogueiras cyberfeministas, pertencimento digital, renovação do audiovisual e o quanto elas narram experiências próprias ou de conhecidos. No meio do caminho fui relembrando e ensinando aos jovens e adultos que trabalho na EJA em Santo André o teatro do oprimido (TO) de Augusto Boal. Tive uma vontade de pesquisar o que tenho aprendido repassando técnicas e estudos em TO para meus estudantes. Foi então que fui selecionada para mostrar esse trabalho no seminário intercidades de práticas na EJA, que acontecerá neste começo de junho na faculdade USCS, de São Caetano. Claro que me pediram para mudar o texto explicando o que falaria porque "é só um relato de experiência". Expliquei que não, é também estudo e prática artísticas. Impressionante como a academia é petulante: se não for pesquisa científica não é estudo... Freire é tão estudado por pesquisadores daqui e fora e era completamente avesso a isso. A pedagogia do oprimido dele, pensada para colaborarmos pela conscientização do oprimido e fim de sua exploração inspirou o TO, também criado para ensaiar a revolução que sonhamos. Gozado que Santo André já deu tanta formação em TO, os próprios praticantes e estudiosos da área conhecem a região por isso. Meus estudantes têm me mostrado o quanto refletem se divertindo, como o teatro é complexo e já deram retorno em auto avaliação como "escrevi essa aula com meu corpo". É um material freiriano e tanto para seguir com estudos mais formais - por hora tenho anos de leitura, prática dos jogos e aplicação deles com as salas. Ainda não sei como será minha escolha de Sofia de tema de pesquisa. Mas além de perturbador, estudar também é uma pinga. Para a qual não temos AA. Escrever futuramente sobre isso deve fazer outras fichas caírem. E que venham novas descobertas!

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Potência terapêutica cênica

Peças e leitura dramática femininas têm sido terapêuticas para mim. Há pouco mais de uma semana e meia, desde que virei o jogo do tratamento para "tourear" a ansiedade e angústia - mas isso é assunto para outro post. Desde que comecei me sentir melhor fiquei em maior contato com a arte - que para mim é curativa e com a cultura popular - que também pode passar uns band aids em nossas dores emocionais. E desde então senti que fazia sentido ressuscitar o blog. É meio melancólico e nostálgico ter visto tantas mídias morrerem - LPs, K7s, CDs, disquetes, VHS, DVDs... Mas com algumas mídias sociais teimamos na resistência. Porque escrever também é resistir. Voltemos à vaca fria: vi As Cangaceiras Guerreiras do Sertão no teatro do Sesi com uma amiga de longa data. Caí de amores! E olha que não costumo curtir musicais. Porém a temática nordestina, as mulheres que se uniram ao cangaço ou foram sequestradas por ele se rebelando, as brincadeiras e ironias com as situações interpretadas, além do cenário e figurino muito criativamente elaborados quebraram minhas resistências. Bom, dramaturgia do Newton Moreno sempre que conquista, desde que vi Agreste. No final os atores ainda cantavam e a plateia já tinha levantado para aplaudir de pé. É um alento em tempos sombrios uma narrativa cênica que dê um sopro de esperança feminista.
Dois dias depois vi Cenas Centrífugas, projeto do Sesc Santo André, no qual três companhias teatrais se apresentam neste centro cultural e deixam seus cenários montados e expostos ao público. Fui com meus estudantes e com eles vimos Teatro de Torneado encenando parte da história caipira da família do diretor, colocando em cena um casal interiorano e parte dos seus quinze filhos. Me apaziguou com minha raízes caboclas. Ao fim, achei generoso a abertura do microfone para dúvidas e comentários, as demonstrações de dificuldades dirigindo os futuros atores (que ainda estudam na Escola Atemporal de Artes de Ribeirão Pires), a iluminação do camarim para que espiassem a correria com figurinos e elementos de cena, além da partilha de como escolhem cenário e construíram uma carroça que só entrará na peça quando já estiver mais completa. Meus aprendizes fazem vários cliques, ficaram sem graça de falar com o grupo cênico, mas voltaram também encantados. E eu, de novo, só me reencanto com o sotaque e histórias brejeiras envolvida por peças.
No fim da mesma semana vi a leitura cênica da Borboleta Parda, da Flavia Alves, que estuda dramaturgia feminina comigo na Pinacoteca de São Bernardo. Conferi a peça embrião dela na Livraria Simples, do Bexiga. Esperava que as atrizes lessem mais e dramatizassem menos e até temia isso, porque costuma dar uma cansada, por mais que também seja atriz e escreva. Mas não: elas interpretaram mais, surpreendendo! E apesar do texto flertar com suicídio e com as fases emocionalmente perturbadas que as mulheres enfrentam, foi acolhedor, catártico e me senti representada tanto pela dramaturga quanto pelas artistas que deram vida às falas.
Como se já não tivesse mergulhado o suficiente na grande paixão da minha - o palco, onde me sinto em casa - no começo da semana seguinte vi Coletiva Pássaro com Cabeça de Mulher, também no Sesc Santo André, desta vez com amigos professores e meu companheiro. Havia me encantado com o texto delas, lido, gravado e enviado pras manas no dia seguinte ao passeio com os "alunos" na região do ABC. Num misto de performance, peça e dança, as atrizes trabalham dores, opressões, humilhações e machismos que desejamos desconstruir. Num dado momento da apresentação, mulheres vão para um lado e homens permanecem no outro, de forma que as expectadoras fiquem à vontade para trazer seus mal estar e - talvez - eles se sintam como nós quando ouvimos que qualquer coisa que queiramos "é de homem". Música, partilha de pinga, percussão e questionamento performático do patriarcado são recursos trabalhados para repensar cenicamente opressões contra as mulheres e claro, questioná-las. Deu um quentinho no coração ver uma artista provocar "derruba o feminismo excludente... o Bolsonaro..." enquanto a outra dançava esses... Sonhos? De quem idealiza uma sociedade mais igualitária. E lá também foi uma grata surpresa reencontrar a colega da oficina Feminino Abjeto, que fizemos na Vila Maria Zélia com o Grupo XIX de teatro.
Pra mim, que estou no movimento de trazer novamente pra minha vida o que alimenta minha alma e apazigua minhas angústias e ansiedades foi uma semana intensa e na qual me senti confortável, à vontade e tendo feito todas as melhores escolhas possíveis pro meu dia a dia. E são estados de espírito difíceis pra eu alcançar - porque costumo olhar para os outros e perguntar se dói tanto estar na pele deles quanto incomoda habitar a minha. Mas devo confessar que tive dificuldade para dormir umas quatro vezes, ao menos. É que me empolgo duma tal forma que quero escrever, chamar amigas pra peças, ler... E para essas madrugas de efervescência criativa criei outro ritual derruba hiperatividade: escrever e tomar chá de camomila.