segunda-feira, 27 de abril de 2020

Do Meu Quintal Não Escuto a Rua

Direto do Pombal... e do meu cabelo retrô
Do lado de cá tenho vivido outro tempo
Sem buzinas, enchentes, constrangimentos
Tanto que já nem sei em que folha do calendário
O mundo de-sa-ce-le-rou... Até parar amarrotado
Do lado de um relógio sem corda
E pra ele dar a mão –  desde então, acumulam poeira

Do jardim em que caminho
Rumo a lugar nenhum
Ou do refúgio gelado
Em que invento moda
E sorrio para um filme inverossímil
A avenida do lado de lá não me perturba

E nessa migração do medo à contemplação
Da irritação ao isolamento
Da preocupação às descobertas animadoras
A dor no peito se liquefez
O sono se dilatou
As emoções e os pensamentos
Dançam ao som de O Dia em que a Terra Parou

Nessas semanas com ar de meses
Tive medo nos auto cuidados externos
Aproveitei minha inventidade
E improvisei como se estivesse no palco
Na programação mais engessada
Jogamos as toalhas e ganhamos respiro
Fui da criatividade ao bloqueio criativo
E cobrei do infinito que a iluminação viesse logo
Que não tenho a vida toda para atingir o Nirvana
Troquei o entretenimento por arte digital
Mas mesmo nos dias mais sem chão
Ainda ouvia pássaros, música e encontrava paz
Aqui dentro mesmo – quem diria?

Assisti tanto o maremoto quanto a calmaria
Com pipoca na mão como quem vê filme
Nenhum me atropelou
Os sopetões não me impedem de sorrir por dentro
Já que do meu quintal não escuto a rua.

Estranhei mas viciei nessa marola
Estão limei notícias
Quis acolher, colaborar e apoiar
Mas minha falta de ar abortou
Iniciativas ao vivo e a cores
Me vi meio de mãos atadas
Vibrando, escrevendo,  gravando
e... quem diria? Torcendo
Encarando a vulnerabilidade
E finalmente dormindo no mal estar dela

Do meu quintal a redução da marcha
Revelou que meu mal, quem diria,
Sempre foi meu pique sem freio
Sem os atravessamentos da rua
Vejo luzes sem poluição entardecerem
Minha sala colorida e étnica

Do meu quintal a economia
Dos desgastes cotidianos
Revela uma capivara à margem
Entre esgoto e mato abandonado

Do meu quintal as saudades
Dos amigos e parentes
E nossos reencontros
Eternamente adiados
Transformam a videoconferência
Na linguagem que reduz distâncias

Do meu quintal ouço pássaros novos
Entre o ribeirão e a comunidade
Me surpreendo com meus improvisos
Respiro e acho espaços internos
Nunca visitados

Do lado de dentro
Faço as pazes e corto relações
Com a tecnologia
Encontro e ofereço solidariedade
Caio de amores pelo entretenimento digital
Depois fujo para a arte analógica

Todos esses mergulhos e descobertas
Por não ouvir a rua
Do meu quintal.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

A paisagem meio borrada da bipolaridade mais eufórica

Fotinho retrô (moro num Pombal sem cobertura)
mas essa vivência no prédio do chefe no Piá
deve ser a única imagem zen no limbo do laptop
Sempre achei que se não fizesse uma quantidade insana de iniciativas, o mundo ia acabar amanhã. Depois de décadas de correria, insônia e exaustão, me vejo no isolamento, olho a janela, notícias ou relatos na internet e concluo: que petulante fui eu! Olhaí o mundo acabando e eu me movimentando e escrevendo. Estudando e respirando. Criando e vendo série ou filme raso pra desanuviar. Mas enfim: nada que o sistema nos convença como primordial.
Se bem que... No princípio tudo era o meme. Na terceira semana confinada descobri os conteúdos virtuais mais cabeça: site de museu, peça na Internet e página para olhar desconhecidos distantes um minuto nos olhos, criando pontes e desenvolvendo empatia. Apesar de serem conteúdos que reforçam meu lado cabeçudo, como resvalam na sensibilidade, acabo fazendo arte terapia informal.
E por falar em arte terapia... Já venho do teatro, literatura e contação de histórias, então, sou suspeita para falar, claro. Mas tenho me experimentado noutras frentes. Depois de acompanhar curiosa e incrédula o companheiro com quem vivo produzir mandalas, se curar e ensinar num espaço de convivência terapêutica que atende neuroatípicos, me arrisquei. Aprendendo distanciada com ele já ensinei nas escolas em que ensino artes para jovens e adultos - e eles, como era de se esperar, piraram! Mas vivenciar o desenho em formas redondas, harmônicas, com padrões equilibrados e conversando sobre ele depois, leva a um processamento de emoções com diferentes facilidades e dores. A mandala do que gostaria para quarentena fez com que notas musicais parecessem hebraico - a sincronicidade é que todos sobrenomes familiares são de judeus convertidos e sempre me confundiram com judia, muito embora seja mezo zen e mezo afro na espiritualidade. A da angústia foi uma sofrência começar, porém depois me concentrei feito presidiário chinês pra terminar - e saí com o corpo dolorido, mas os sentimentos menos turbulentos. Na do medo, os coronavírus viraram umas gelecas infantis ao redor do centro estrelado - quando criança, meus pingos nos is do meu nome também traziam estrelas. Na da tristeza, voltei à colagem, técnica que tenho uma paixão platônica por nunca ter estudado. E simbólico que justamente a da ansiedade tenha me dado um branco do que trabalhei nela - não sei se por esta emoção viver sendo varrida pra baixo do sotão interno... Parece badauê sem noção, mas de fato terminamos melhor - arte é feito meditação e acupuntura: mesmo que fizermos sem muito estudo formal, variando técnicas, com mestres guiando muito genericamente (ou levemente picaretas), no esquema capetalista industrial do convênio, ainda assim, focando em nosso espaço interno inabalável sempre disponível (ou centelha divina, buda interno, se preferir) sempre faz bem.
Criar é um processo que reverbera onde não imaginávamos. Também gravei vídeos narrativos. Só pensei em focar nos adultos, já que o mercado não admite, mas eles também precisam. Até os jovens, tão acusados de letargia pelas famílias e gestão, me pedem contações quando volto às salas. Obviamente que criança é tão esperta que também se trata, aprende e imagina para além da narrativa. E no último dei palhinha da formação - uma das atividades que mais me realizo, lidando com professores, assistentes sociais, educadores, bibliotecários, terapeutas, estudantes e psicólogos com vontade não só de aprender, mas de contar também. Nem só de três, dois, um... Ação! Se preenche uma quarentena. Voltei às postagens, comecei uma dramaturgia... No princípio imaginava produzir um diário. Mas as fichas, mudanças na relação com os sentimentos e olhares que transformo com emoções mais apaziguadas são tão reveladores, que passo um tempo maior burilando as mexidas do isolamento para por em palavras os insights. Às vezes, nem é aqui. É no papel mesmo porque como ex jornalista vintage, adoro um bloquinho e o cheiro deles.
Não caio de amores só por material impresso em branco. Tenho uma curiosidade e vontade de fazer cursos que não cabe em mim. A maturidade e a própria educação me ajudaram a focar - era isso ou uma porcentagem ínfima de aumento anual referente à inflação. Às vezes ainda namoro um curso nonsense na conjuntura atual: dublagem, roteiro, interpretação para cinema, pedagoginga ou pedagogia da encruzilhada. É quando uma remanescência dos pragmáticos dos meus pais que habita em mim cutuca minha mente inquieta: vai ganhar esse prêmio consolação aí até quando? Com esses chacoalhões da vida e da família, cheguei à segunda pós do teatro do oprimido/ psicologia social e ao programa Diversitas de estudos da diversidade, intolerância e conflitos da FFLCH/ USP. Sim,é muita cabeçudice pra uma arte educadora só. Mas ambas pesquisas nasceram das minhas práticas. Como alguém mão na massa, não daria conta de pesquisar só teoria. E como sempre batalhei por trabalhos significativos, o efeito colateral é que só estudo o que gosto. E pesquisar o que se adora vira auto conhecimento "faca de dois gumes" - nós já temos noção do que cicatriza cada dor, mas também há comprovação de que tudo que se conhece implica na perda de um paraíso. Em tempos de isolamento eu sei retrabalhar meus mal estar artisticamente, mas também desconfio que levar em consideração o contexto  que vivem meus estudantes ou colegas de trabalho trava lá no chão de escola quando procuramos ajudá-los de forma paupável. Além de nessa altura do campeonato desconfiar que a educação formal tenha me sequestrado o prazer de estudar porque descobrir interesses é meio viciante - como todo viciado que se preze, tenho abstinência de estudar por estudar, sem pagar de maníaca dos certificados.
Pra quem tem essa mente hiperativa os exercícios ajudam voltar ao corpo. Tenho caminhado onde moro e talvez pela 2a vez na vida, vejo surgir uma gratidão por viver aqui, já que os jardins e a distância ajudam não prejudicar o confinamento - além dos vizinhos se afastarem quando nos cruzamos, com tanto receio quanto eu com relação à Covid 19. Acesso vídeos de dança, tai chi, pilates, yoga e alguma live de dança, dependendo do humor e ânimo do dia. Suar me desacelera e uma das descobertas da quarentena seja de que dançar em casa não dá vergonha de ser descoordenada. Tenho exercitado também fazer 15, 30 min diários quando estou borocoxô feito semana passada.
Ainda é muita coisa? Para quem costuma viver no ritmo dum trem bala, passando por paisagens deslumbrantes, mas vendo tudo borrado é um baita avanço - vai por mim! Penso que se não estou afogada com filhos e trabalho feito amigas mãe ou num home office insano, posso passar esta temporada enxergando a ocasião como sabático sem grana, nem possibilidade de sair. O maravilhamento atual é que férias sem grana me emputeciam porque sou a sagitariana doida das viagens, mas no isolamento tenho curtido inventar o que fazer, intercalando com algum trabalho - com consciências de que é um privilégio e que com asma não posso ir pra linha de frente dos trabalhos solidários. Para quem é elétrica, inventar muita coisa é meio pinga: não conseguiria ficar só no sofá e acho falta de imaginação tédio entre privilegiados. Para minha personalidade e transtorno, fazer de cinco a três coisas em casa já é uma melhora inacreditável. Claro que não conto cozinhar ou arrumar o apê - isso não tem escapatória, mas já comemorei me mimar com comida na contramão do fast food, me diverti limpando altar, brinquei dando um tapa nos móveis e ainda fiz faxina pedagógica: é surreal não darmos conta da nossa limpeza, chamar a diarista que limpa o prédio e inaceitável que parece que sempre haverá quem precise disso. Em tempo: a paguei para não vir no começo, mas há perspectiva da verba minguar, não voltarmos e precisar de alguma reserva.
Brinquei quanto ao sabático, mas lá nos colégios nos demandaram planejamentos - que fizemos sobre nuvens, sem ideia de em que nos basear, já que não temos ideia do retorno, reposição ou como redesenharão o avariado calendário escolar. Também solicitaram atividades - para o site não deu certo, pois demandava direitos autorais, trabalho muito vídeo da internet e com alguns o levantamento disso complica. Mas as mandei para os alunos nos zaps das salas, com a intenção de propor mais arte terapia, já que estava mais ansiosos que nós e sem o que recorremos contra as perturbações do confinamento. Percebi que tinham dificuldade pra entrar na página da prefeitura, que só tinha exercícios escritos, imagine para o que programei, cheio de vídeos? Quando enviei o site do museu da região de ciências, com atividades na página, outra aprendiz quis saber o que aluno sem internet faz. Para educação pública, ensinar EAD é milagre de Fátima, não é viável na realidade em que as turmas vivem. Saio disso com gratidões que não lembro de ter conscientizado pela água, Internet, saneamento, não ter violência em casa, possibilidade do auto cuidado, pelos estudos possibilitarem me expressar e abrir minha mente, pela religiosidade não picareta me devolver a paz interior que o sistema me saqueou e - quem diria - até pela Netflix. Ok, parte do sistema às vezes é necessário.
Desconfio ainda que possa ainda voltar ao tratamento questionando se tenho mesmo bipolaridade mesmo.
Por hora, parafraseando a bíblia, que a ti te baste um questionamento por dia.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Na Tenda da Lua do Isolamento


Meu vizinho toca trombone. Pela primeira vez tenho achado tocante: um instrumento de sopro e seu proprietário resistindo à tristeza que chegou como brinde do isolamento. Antigamente tinha bode dele. Pensava que era devido aos gostos musicais diversos.  E quem me vê falando assim pensa que mudei a percepção há um baita tempo. Foi só desde a quarentena mesmo. Parece que só a impossibilidade de ligar na portaria e perguntar qual o apartamento eruditamente musical para entregar couvert artístico já nos aproxima. Talvez só o medo de adoecer ou perder um ente querido nos refresque a memória que na hora desse frio na espinha, estamos todos na mesma roubada.
Cruzei o prédio dele na caminhada para espantar a melancolia. O jardim que plantamos no conjunto em que moro permite que andemos sem tanta exposição. Os vizinhos também têm se distanciado nos encontros involuntários. E pela primeira vez sou grata à quebrada em que vivo. A raridade das saídas é tanta que tenho exercitado fortemente a imaginação, tentando fazer de conta que o córrego perto não carrega sofás, material de construção e esgoto. As andanças têm sido contemplativas. Não sei até que ponto ajudarão no condicionamento.
Não é só essa caminhada que virou um evento. Uma amiga de estudos enviou um vídeo em que a pessoa se montava para jogar o lixo, como quem vai à festa. Pensei que demoraria mais para chegar a esse ponto, mas estava praticamente negociando toda fast food restante para o marido me deixar escapulir rapidamente. Como tenho asma, ele tem se predisposto a resolver lá fora a maior parte das questões. Não subi no salto para ajudar a encher a lixeira, mas saí achando a rua linda, as árvores incríveis e as pessoas uma simpatia. Me senti como minha finada avó que elogiava todos os amigos e nomes de quem apresentávamos. Encontrei o jovem vizinho. Ficamos conversando como se tivessem saias de bailarinas entre nós, mantendo uma distância saudável e criativa. Nem sei se noutra ocasião prosearíamos tanto. Mas de repente as pessoas com as quais trocávamos cumprimentos secos, ao nos cruzarmos nos corredores nesta quarentena, se não fosse perigoso nos abraçaríamos empolgadamente. Lembrando do vírus, obviamente nos contemos.
E a saga na rua com rápidas saídas segue... Consegui barganhar uma escapadela com meu companheiro e fomos à feira semanal. Como descartei as últimas máscaras ganhas da dentista, improvisei proteção com uma bandana amarrada ao rosto. Soa meio bandida estilosa e também usava pra escrever na lousa sem falta de ar lá no trabalho. Antes do adiantamento do recesso, claro! Nunca um pastel na esquina foi tão empolgante! Aumentaram a distância dos clientes aos feirantes com faixas. E mesmo nas filas as pessoas não ficam mais no nosso cangote. Sentamos no banco da rua e vimos as luzes do shopping na cidade ao lado. Deve estar fechado. Sabemos que prevenimos riscos para nós e os outros, mas lembra as mais aterrorizantes séries distópicas.
Crio para despistar memórias audiovisuais que são gatilhos para deprê. A vizinha veio ajudar com as injeções do tratamento contra alergia de ácaro, para que pudesse fugir da farmácia. A agenda para meia dúzia de coisas que planejei fazer para não ficar ansiosa diminuiu. Conversamos tanto quando veio, que sugeri jantarmos quando o apocalise acabar. Será que só na periferia as pessoas se aproximam? Emocionalmente né: fisicamente damos passos pra trás.
Lá na escola a gestão também se preocupa e pede envio de exercícios, porém quando fui encaminhar no zap dos estudantes, vi que já estavam sem banda para as atividades do site da prefeitura, imagine para acessar meus vídeos de arte? As exclusões dos aprendizes são bem mais emmergenciais do que a rede de ensino dá conta. Para não voltar à angústia devido nossa limitação na ajuda possível, volto aos estudos. As aulas seguiram online, o que nos mantém ocupados, muito embora estranhando a simulação de normalidade das faculdades. Ao menos entre os nossos seguimos ensaiando sanidade... Nem que seja para compartilhar ignorâncias!.
No embalo dos meus desconhecimentos, vejo filme e série para fugir criativamente daqui ou repor as esperanças na humanidade, depende do dia. Em outras ocasiões falo sozinha na janela. Não pago mais de maluca: nas janelas da frente há outros tagarelas. Pena que minha câmera é ruim: daria um curta metragem e tanto! Inspirada pela criatividade que emerge, crio. O que me abastece do que tenho precisado nos últimos tempos:  expressão e terapia. Quando não é dia de imaginar que estou num divã com minha psicóloga na internet, respiro. Concentro em mantra, imagens, sonhos, velas. Mas respiro, deixo que as maluquices internas surjam e passem. E pela primeira vez na vida consigo me distanciar das emoções. Lapido os sentimentos para que sejam menos rústicos. E com isso parto para a próxima semana.