sábado, 28 de janeiro de 2017

Sampa doída e apaixonante

São Paulo envelhece se transmutando mais uma vez. Se te disserem que nossa cidade é incrível ou é difícil, os dois estão certos. É que a capital paulistana são muitas: temos o recorte dos alternativos, dos periféricos, dos descolados, dos endinheirados, da inclusão, dos vidros fechados e das portas blindadas. Temos a dos que circulam na Praça dos "arteiros" Roosevelt, que compram mais em conta na José Paulino ou ainda mais barato, no Brás, que se resolvem correndo na Paulista, que improvisam com as bugigangas da 25 de Março, dos que nunca saem do Capão Redondo ou do Heliópolis e vivem felizes e à margem, dos que circulam na baladeira Vila Madalena, dos que comem nos Jardins, fazem projetos nas comunidades ou nem sequem sabem que é possível caminhar a pé por ela. 
É a cidade para os que tem tanta curiosidade e sede de viver que não cabem nos bolsos.
Onde volta e meia encontramos parceiros de troca. Pedimos e descolamos bolsas de estudos. Descobrimos um filme para professor mais em conta às duas da tarde no - quem diria? - cinema patrocinado por bancos há anos. Vemos peças de graça ou a preços módicos, bancadas pela indústria ou comércio. Reabastecemos as energias no parque. 
Choramos de nervoso com serviços públicos estaduais meia boca e - pasme! - aparecem estranhos oferecendo ajuda. Não é São Paulo que tem pressa. É o sistema. Venha da Paulista à periferia para conferir se não sentirá a mudança de ritmo da cidade. 
Por mais que pareça imprevisível, tínhamos uns sambistas meio entalados em nós: já prestigiávamos um colega aqui, uma roda de samba acolá, mas quando o Carnaval de rua ressuscitou, foi o esplendor: quem nos imaginava há dois anos correndo atrás do Alceu Valença na Sumaré? Podemos não contar com o gingado mais encantador no pé - é a mania hiperativa de abraçar tudo que é frela e curso - mas que o coração salta no compasso do tamborim, isso sim!
Cabe na cidade quem trabalha, estuda, cuida de filho três turnos e quem despenca para Parelheiros estudar clown. Por isso às vezes ela nos cutuca a gastrite: depois de anos se apropriando do espaço público, meter cinza nesta altura do campeonato? A cidade abraça o nerd que só quer Netflix e os maratonistas, tem abertura para tudo que é tribo.

Nela podemos nos reinventar de atriz fantasiada de executiva de comunicação à professora, contadora e escritora de histórias. Obviamente que na transição usufruímos menos do mundo que ela oferece. Mas sempre descobrimos uma área verde pública, um ensaio aberto, uma exibição sem custos, uma confraternização pague quanto achar que deve e nos reencantamos com a descoberta de novos companheiros.
Certamente o centro histórico se ressente de passarmos batido pela história que
carregam suas esquinas - minha paixão por ele remete à época em que ia trabalhar com minha mãe e ganhava lembrancinha no velho Mappin até as temporadas de ensaio e ocupação de mostra estudantil no baixo Bexiga, dividindo teatros antigos com os morcegos.
Tem quem não acredite, mas juro e provo que São Paulo tem cachoeira sim: dá até
escorregar em trilha, trombar com cobras e macacos, escolher de que ângulo conferir a capital: o mais saudável e com cheiro de mato da Pedra Grande ou urbanóide congestionado de antenas do pico do
Jaraguá.
Viver aqui é conhecer uma merreca da cidade e não espantar muito com quem circule menos ainda. É jurar zerar a lista de museus ainda este ano e perceber que o tempo comeu os finais de semana e fomos nos mesmos picos de sempre. É mais ouvir ou ler os amigos que revê-los: um tem filhos, outro está doente, o terceiro mora na outra ponta e nem sempre a $ alcança, o quarto perdeu trabalho e está frelando nonstop, o quinto tem um trabalho de subsistência e outro por paixão, a sexta
estuda pra concurso, o sétimo tem horários mais malucos que os seus e temos também os maníacos por limpeza - é, a cidade cinza também acinzenta os móveis, nem todos relevam tranquilamente... 
Morar pras bandas de cá às vezes é se perder nos próprios sonhos. Mas também é, às vezes atravessar uma avenida cinza e se maravilhar com a grama se enfiando dentro da sandália no canteiro. Às vezes se encantar com vizinho de banco no transporte público. Ouvir as velhinhas da época em que
se transitava de bonde nestas terras. Estranhar perceber que o pessoal da Paulista não pode parar, mas 35, 40 min dali já ter morador com cadeira na calçada. Gozar do sotaque negado. Ouvir Hare Krishna no centro financeiro da cidade. Se maravilhar com por do sol multicor desviando dos arranha céus.
Quando encaramos maratonas trabalhísticas ou de estudos por uma temporada, é jurar se mudar para a praia ou
interior, mas chegando lá estranhar preconceitozinho ou falta de opção musical. No retorno, chiar de enfrentar 4 estações de tempo diárias, mas sair rindo de mochila e equipado. Perder a condução xingando, mas também bater papo com o motorista e ele avisar o ponto que precisa descer. Como diria minha avó, as coisas não ornam em Sampa.

Meio lugar comum explorar as contradições paulistanas, mas quem abraça o mundo podia ser de outro jeito? Ou ainda não fui embora por não ter encontrado "meu interior", ou ainda não realizei tudo que sonhei por estas bandas. Me aguarde Sampa!

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Aspirante a Professora à Espreita

Foi num fim de tarde chuvoso. O pessoal do Espaço de Leitura, como sempre, apostou que o sol seguiria a todo vapor. Nós aqui à espreita já tínhamos nos tocado que aquele calor seria debandado pela chuva de verão de sempre. Mas artistas são tão otimistas! É o movimento de sempre: um calor em que todos eles ficam quase de língua de fora e então... Nuvens, trovões, chuva de verão... Há anos. Eles não aprendem. Chega a ser divertido.
Mas naquela tarde, vieram vários se apresentar. Uns de ponta cabeça, outros dobrando papeis e os demais... Bem, os outros não acompanhamos tão de perto, já que correram para as casinhas literárias do parque e as lotaram de tal forma que foi difícil para nós encontrar algum espaço entre eles. Ouvimos umas risadas, músicas, mas nos chamou atenção o último que foi bem enfático no final:
- Ocupamos o Espaço para ele não fechar, podem terceirizar o parque...
Não tenho muita certeza do que seja terceirizar, mas fechar o parque, certamente não é bom. Perguntei aos outros moradores daqui, que às vezes passam batido pelos que vêm correr, comer ou tirar fotos e foi a mais antiga de nós quem confirmou:
- Há um movimento para que empresas cuidem dos parques, cobrem e possivelmente sucateiem as áreas verdes.
- Caramba! Já não temos muitas! Soubemos de colegas criar casas entre as luzes vermelha e verde dos farois! É preciso fazer algo!
- Uma turma que estuda ali do outro lado da rua discute isso também. Já viu como aquela casa histórica do lado de lá mudou os ares nos últimos tempos?
Não tinha reparado. A maioria de nós come, dorme, vai dum lado ao outro... Mas aqui entre o verde mesmo. E se ele faltar? Pensando bem, melhor conhecer essa turma da tal casa histórica. Quem sabe o que eles conversam nos ajuda e...
Bem, quem não circulava fora do Parque da Água Branca teve que aprender né? Nada como uma observação atenta! Conferi os vira latas esperando os carros pararem, desconfiando inclusive das luzes vermelhas parando os automóveis, mas nem sempre... E lá fui eu cruzar a rua junto com os tomba latas da região.
A tal casa histórica aumentou. Quando começamos a por reparo só uma dela reunia os preocupados com a tal terceirização do parque. Vi reformarem a casa vizinha. falarem de escola sem partido, contação de histórias, arte educação, percurso na educação... Mais um pouco eu podia me formar entre eles.
Foi quando me vi meio inchada. Precisando ficar no meu canto. E o pessoal discutindo, reformando, ligando, ensaiando. Tivesse a voz tão incisiva quanto eles e pedia mais tranquilidade, ao menos por um tempo, mas que gene agitada circula lá! Achei um cantinho menos agitado entre as casas históricas. Pouco tempo depois e... nasceram meus ovinhos! Choquei tantos que me espantei: não imaginava que viessem tantos! Quando nasceram... Caramba, devem ter puxado o pai! Nenhum moreno chamando atenção como eu. Aí sim, tive que me resguardar, afinal, tão pequenos, podem sair por aí, se perder, serem pisados... Nem sabem voar ainda! Não que sejamos capazes de voos rasantes admiráveis, mas o mínimo para nos defender, sim. Porém cismei que este ambiente de estudo, discussão, reforma, ensaio, risadas pode ser um pouco perigoso para eles. Afinal esse pessoal raramente olha o chão! Também achei justo procurar o pai e revelar que todos puxaram as penas branquinhas dele. Mas comecei gostar destas liçõezinhas que comecei a ter por aqui. Quis compartilhar com os patos, corujas, todo mundo do Parque. Agora virei nômade. Fico um pouco aqui, volto ao Parque, convoco a bicharada, vários reclamam que não querem fazer assembleia, que a política está meio desacreditada... Mas quando peço ajuda com os pintinhos e aviso que será uma aula resumida do que tenho ouvido infiltrada na tal Casa Tombada do outro lado da rua, vejo muitos se aproximando mais curiosos, já que ainda não tinha descoberto o que tem movimentado as casinhas históricas do lado de lá. Às vezes também "toco o terror":
- Se não entendermos com eles como defender o Parque, vocês serão os próximos a morar entre um farol e outro, como nossos colegas que voaram para o centro antigo!
É quando o resto deixa de procurar comida, nadar e vem escutar o que tenho aprendido de literatura, educação e arte do outro lado da rua. Uns desconfiam que não é por este caminho que nos defenderemos e ainda não sabemos como resguardar o Parque da tal terceirização. A confiança dos professores e artistas do lado de lá tem me contaminado e estou buscando fazer o mesmo com os companheiros do Parque.
Quem sabe juntando a bicharada aos estudantes e professores aqui do lado descobrimos juntos?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Quase com a Mão na Terra

Furei uma madeira pela primeira vez. Também amarrei uns bambus e pintei parte dum playground construído a partir de material da natureza. Ficava um caco de cansaço na sequência. Mais caipira do asfalto do que minhas gozações podiam prever. Porém os facilitadores do retiro Construindo Playgrounds com Materiais da Natureza, que fiz em Guaporé, substituindo o Caminho das Artes, em Canela, adiado porque o calote aos servidores gaúchos prejudicou o planejamento todo, foram compreensíveis. Não devo ser a primeira perdida que recebem na Cidade Escola Ayni, no interior do Rio Grande do Sul. Como fui parar lá? Alguma indicação online já tinha me deixado interessada na proposta: uma espécie de bosque escolar, sem salas, matérias, provas, que pode usar pedagogia de projetos, mas não se reduz a ela... Quase uma desescolarização em meio a tanto verde que até lagartos qiase com porte de jacarés encontramos! Havia professores, arquitetos, mas sobretudo fãs de criança e entusiastas duma educação menos engessada, além de pessoas sem medo de olhar para dentro. Não fui a única a achar que a proposta já estava a todo vapor, cheia de crianças: porém são os adultos e professores, em sua maior parte, que estão construindo e se beneficiando da iniciativa toda por enquanto. De qualquer modo, não deixa de ser gratificante ter apoiado o plantio de sementinhas por lá. Entender um bocadinho a mais de permacultura e da adaptação de bioconstrução para a realidade úmida do interior gaúcho. Parceiros de Santa Catarina, interior de São Paulo, Rio de Janeiro com suas ideias, uma mais potente pra aprimorar o mundo que a outra... Animador conferir tantos querendo se melhorar pra esparramar uma educação mais humana, menos engessada, mais próxima da terra, lúdica e menos cristalizada. A princípio não entendia tanta exaustão com minhas poucas ralações debaixo do sol e minha sangria desatada por chocolate, mas... Menstruei dez dias antes. Achei bem simbólico porque fizemos vivências ligadas à nossa criança interior, em que experienciei de novo a sororidade de acabar de conhecer uma mana, praticamente desenrolar meu cabo USB invisível, plugar nela e chorarmos juntas dores que sentamos em cima para não nos mostrarmos frágil... Mas é na vulnerabilidade que mais somos acolhidas e percebemos que não estamos sós. Entre um ensaio de construção aqui e umas comidas vegetarianas acolá, muita troca das experiências, sonhos, encantamentos e descobertas nos expressando pelo bastão da fala. Devo reconhecer que parte dos facilitadores tinha uma abordagem meio new age, em meio a qual minha maneira cabeçóide de captar as coisas se perdia. Teve momento ouvindo sobre geometria sagrada em que minha resistência foi tanta que não continha o sono.
Rolou uma atividade atrás da outra, sempre convocadas por uma chamada brincalhona dos multiplicadores imitando uma gralha, que avisava para o retorno ao estudo em conjunto. A maratona me deixou exaurida e sempre me pegava escovando dente, tentando recarregar as baterias ou me localizando entre tanta novidade. Um dos momentos em que não me contive foi quando compararam um pouco mais as culturas ocidental e maia, reconhecendo a primeira como machista. Ouvi uma culpabilização da mulher por sua desconexão com intuição, cuidado com os outros meio disfarçada... Fervi e não dei conta: partilhei que acredito que todo um sistema nos oprime involuntariamente até chegarmos neste ponto e que percebo espaço tanto para militância com o público que lido e vejo machucado injustamente, quanto para sentar e olhar para si e que há contextos em que só um ou o outro são necessários, noutras situações os dois se complementam, além de sermos privilegiados em poder transitar entre ambos, já que não tinha um negro nas vivências, por exemplo. Pronto, o núcleo socialista feminista do retiro se "linkou" como um ímã. Enfim, não largo a militante nem no mato com inseto me comendo os pés, trabalho comunitário e acolhimento de pessoas inacreditavelmente                                  
diferentes. No único momento livre em que tentamos ir numa cachoeira, me encantei com as árvores se fechando em cima de nós, não chegamos a terminar a trilha, era mais comprida e enigmática que as urbanas retiradas esperavam (porque confiar em caiçaras e caipiras? Nunca é tão facinho quanto asseguram), mas de novo as manas se reconheceram e debateram até longe dos palanques e das parcerias mais oprimidas precisando de nosso apoio. Por fim, um túnel humano encerrando as atividades, com colegas abraçando, beijando, dando carinho ou apoio no ouvido tinha que me fazer chorar não? Afinal o corre corre, cansaço e ir até o último ânimo sobressalente não eram por acaso. Me maravilho que mais e mais percebam como a educação quadradinha precisa ser reinventada. Chateio um pouco por
desconfiar que não dê conta de mato o tempo inteiro na minha vidinha urbanoide, mas me espanto das minhas amarrações incomuns entre o ensinar, atuar, comunicar, militar e cuidar ressoem longe e entre novos "velhos camaradas de jornada". Teimei tanto com os materiais naturais na tentativa duma biocontrução, mas acabei fazendo melhor registrando parte das atividades.
Numa dinâmica interativa passamos vendados por um labirinto em que ouvíamos a todo tempo para levantarmos a mão e pedirmos ajuda quando precisássemos, sem isso permanecíamos trombando nas cadeiras e fios, tinha toda uma intenção de fazer ligações com o cotidiano fechados nas nossas dificuldades e percepção de que temos que fazer tudo por conta. Muitos se irritaram ou emocionaram... Eu já me vi cigana dançando perto do fogo quando colocaram a música meio maia... Artista, médium ou ambas? Me senti protegida pelo escuro das eternas risadas com meus tombos de sempre, foi lúdico demais entender como os jovens piram num jogo, me senti entregue ao game adaptado, mas me angustiei vendo os amigos sofrendo sem solicitar apoio depois que pedi auxílio, mais do que experimentando a confinação imperceptível no labirinto sem saída criado para a atividade. Experimentei a confirmação daquela explicação budista de que vivemos no samsara, que é inebriante demais para nos propormos e termos disciplina para meditar e transcender: uma hora um amigo, noutra uma viagem, mais adiante um namorado nos dispersam...
Vivi para ver o fundador afirmar que não era comunista, sonhar alto com o Pão de Açúcar se abrindo para beneficiar a comunidade, contar que os colaboradores trabalham quatro horas para ver o sol e eu precisar contar que ele parecia a vlogueira Jout Jout feminista na prática, mas querendo fugir aos rótulos no começo. Temos parceiro de sonho até três estados abaixo, numa região que se revela preconceituosa em detalhes e ao mesmo tempo visionária na empreitada coletiva que viabilizam por lá. Entre um choro, respiração, ralação e cliques, seguimos com as utopias se complementando.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Enquanto eu viajava

Insônia na viagem: pode a divina providência ser mais fanfarrona que isso? Ouço a gatinha do hostel Cape Town miar pela janela, em Cambará do Sul. Os galos começam sua sinfonia matinal. E eu, como quem não dorme, quero matá-los às estilingadas atrás da cortina. O teto é de madeira, lembro do meu avô, dos primos, cheiro de terra, café e chuva do norte do Paraná e a saudade me inunda. O interior do Brasil é bonito o suficiente pra nos fazer sentir que a energia criadora divina não é uma invenção nossa por conta do vazio existencial. Bebi um pouco de vinho, ouvi Maná e também Trem Bala, de Ana Vilela, com os colegas deste albergue interiorano na noite anterior. Este hostel aliás é o único em que vi famílias inteiras se hospedando nos quartos coletivos. Conseguimos aproveitar o finzinho do expediente da padaria para comer cueca virada, rir e filosofar da vida, tomar café e improvisar uma janta. O sono se vira do avesso dormindo em quarto coletivo, mas também podemos ensaiar um arremedo de família num dia e pouco de passeios, piadas, refeições, cantoria e confissões entre "os mais novos amigos de uma semana atrás". Meu livro, o adulto, que comecei depois das primeiras semanas de ócio criativo das férias, se organizou em pedaços dentro de mim. Ensaio plugar os insights emocional, sociólogico, psicológico e da minha busca entre um trabalho, viagem e uma epifania ameaça inundar essa cama. O galo porém me convoca a aterrar e desta vez não o quero matar, seria ligeiramente vexatório acordar o povo do quarto num choro de conexão, sintonia e significado.
E nem a cachoeira ajudou disfarçar minha cara de noite mal dormida
Almoçamos horas depois das andanças pelo cânion de Itaimbezinho, mas meu corpo resolveu ter fome entre quatro e cinco da manhã seguinte: ah, esse sistema digestivo fora de órbita ainda me paga! Apesar do nome do restaurante no almoço conter preocupantemente um galeteria na fachada finalmente consegui comer sem carne, nem me entupindo de lanche e depois terminar enfezada. É que fazer isso no interior do Rio Grande do Sul é uma façanha. Uma horta nos abasteceu com salada orgânica, mas sem falir na refeição - esta e uma das coisas que seguem me brochando em viver na cidade grande: os preços dela. Matei saudade de torteli com moranga que conheci na 1a vez que choquei  gaúchos na serra dispensando o churrasco de chão. E o creme de baunilha tinha qualquer coisa das sobremesas da minha mãe... Ou seria da madrinha? Nem tudo foram flores: a farra dos derivados de leite fez a cólica de intestino me pegar de um jeito que senti saudade do banheiro com buraco no chão do meu avô. Sei lá, nestas horas agachar sempre parece que salvará das pontadas intestinais. Tenho muito do lado brejeiro da única amiga jornalista paranaense (da região em que há anos tinham banheiros com buraco no chão). Ela foi uma das poucas que me alertou quando uma várzea trabalhística chamou pra trabalhar onde ela pagou seus pecados antes de mim. "Fale sobre sua prisão trabalhista com as manas. Eu falaria": vou criar essa campanha. Teimamos em caminhar horas entre os mirantes do único cânion que deu tempo de visitar: e não é que a névoa e chuva do começo da manhã resolveram dar uma trégua? O guia explicou que antigamente havia um único continente na terra e quando ele separou, esta região vulcânica deu origem à paisagem local: uma estupidez de bonita! Desse jeito é fantástico aprender ciências. Se é que entendi direito... Do cânion pra cima, Rio Grande do Sul, do penhasco pra baixo, Santa Catarina. Prova visual de que as fronteiras são uma cretinice indefensável. Estudo de campo geográfico. Ele explicou que a Trilha do Rio do Boi tem esse nome porque o gado despencava. Depois contou um causo gauchesco fantástico: estava como as crianças que conto histórias - botando a maior fé... Até que ele deu uma brochada enfiando a explicação científica no final. Na saída do parque soubemos que o pessoal está sem receber há três meses. O que mais o governo federal abastecerá alem de seus bolsos e o judiciário? A turma lá ama mesmo o lugar, pois segue atuando voluntariamente, por doações, pra divulgar e manter o Parque de Aparados da Serra. Me aproximei duma parceira paranaense de viagem, também arquiteta, mestiça e de volta à casa dos pais: parecendo a mana que voltou ao Nordeste! Cáspita as histórias se repetem! Conheci também um professor de inglês que dá aula numa escola em que queria ensinar teatro: faço minha auto propaganda espontânea e... caramba! Dormi sonhando com aula cênica em inglês!
O Guimarães Rosa têm razão: sertão é o que não conhecemos. O país é uma escola interiorana pra aprendermos fazendo, muito embora os transportes e o marketing de turismo nacional só divulguem o já congestionado litoral - e a maior parte dele, aliás, beeem parecido, comparado à diversidade sertaneja. Cada um dos sotaque, acolhimento, simplicidade, comida interiorana, histórias de rodoviária, colegas de viagem e de área do banco da frente no ônibus, hortênsias de beira de estrada, fotos antigas, gentilezas, memórias, identidade, livraria-centro cultural-café Miragem com empreendedora ativista dos costumes gauchescos perdidos e causos fazem a via sacra até lá sem carro valer a pena. Até Guarulhos, há três partidas atrás, me surpreendeu por amanhecer mais vermelha, aberta e sem nuvens há uma semana! Viagem é uma meditação em processo.