quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Livro dos Privilégios

Ganhou uma casa dos pais. Está inscrita no Livro dos Privilégios capítulo 6, página 4, no qual começar desse favorável ponto de partida permite brincar com o pai que pode fazer o que gosta, ter que ouvir que ele tomará a casa, já que ela se recusa ser bilheteira do metrô e fazer arte nas horas vagas e ainda retrucar que ele não pode, porque ela pagou a papelada em nome dela. É respondona. Foi a forma que encontrou de não brigar com o pai dando cadeirada feito as tias ou ser proibida de fazer ou ir em tudo que quer, feito a mãe e desistir do que está a fim por machismo. A mãe já é boa demais pra ser verdade. Diz a psicologia que a mãe ideal nos obriga a ser filhas pra sempre. Ela tem recusado esse papel, ainda que a depre da mãe não retroceda há três anos, desde a aposentadoria. Às vezes se magoa de ter seguido o que a progenitora dizia, pra nao ter filhos que é uma preocupação muito grande pro resto da vida, mas quando fez uma oficina cênica do feminino e estudou doula, achou a vida muito sabia de poupa-la da maternidade. Não teve irmãos. Na infância quis, mas também brincou tanto com os primos que desencanou. Brincou o suficiente pra ser abusada por dois deles, tomar bronca e apanhar, mesmo sem saber o que acontecia e se chocar porque desconfiava que havia algo de errado com aquilo. Pobre mãe, sempre deixando o pai atravessar o samba violentamente, sem conseguir defende-la, porque afinal o que seria duma mulher do interior na cidade grande sem o marido, primo casca grossa? Mesmo ganhando mais que ele? Dependência emocional é um inferno. E a que conta essa história herdou dum o jeito meio cachorro lambão de amar e do outro, o modo pé na porta de se posicionar, com uma pré disposição sagitariana de morrer quando abre a boca e uma risada de derrubar as pessoas da janela. Como diria um mestre teatral, a gente põe o pé pra fora da barriga e já se contradiz. Mas chega de falar de família, porque já terá overdose dela no Natal.
Capítulo 7 do livro dos privilégios: teve nove namorados e perdeu a conta dos bilaus amigos, de todas as espécies: o da adolescência, machista e homofóbico, do qual se conscientizou só madura, apesar de feminista leiga desde adolescente; o maníaco que até ganhou manchete de jornal; os negoes comunitários que vieram servir à comunidade feminina sem abrir o jogo; artistas mais sensíveis que ela mesma; o que queria ter filhos e a assustou já de saída; o traidor que engravidou a amante na depressão dela; o geminiano que falava mais que ela; o professor de yoga que virou reaça sem constrangimento, o tiozinho aventureiro meio cagao e finalmente o companheiro budista mais novo. Enumera só pra contar que é bissexual não praticante e que as excessões aos imaturos traumatizantes não completam meia dúzia no mercado amoroso. Já chorou mais do que mereciam em verso e prosa e até publicou. Os privilégios aqui foram nunca ter sido estuprada, nem apanhado ou ter sido roubada. Chega de drama amoroso por hoje.
Capítulo 8 da mesma tragicomédia: tem uma coleção de ex chefes jornalistas do naipe O Diabo Veste Prada. O suficiente pra ter ranço que se pagam bem, boa parte da verba terá que ir pra terapia, yoga, massagem ou retiros, pra não pirar. Com ela foi assim por 18 anos. Valeu a pena viajar, conhecer os amigos, fazer perguntas desaforadas, ser reconhecida pela voz, se encantar por assuntos inimagináveis, ganhar ingressos, se conscientizar, ganhar livros, almocar bem, cair de amores por trabalhos social, cultural e educativo. Mas foram tantos os plantões, reconhecimento baixo e insônias que terminou depre. E aqui, foi a família invasiva que ajudou nos seis meses chorando, com preguiça de viver e depois nos três anos frelando e cozinhando enquanto o jornalismo agonizava,  enquanto profissiolizava a contação de histórias que fazia desde a infância. Dessa transiçao, foi pra educação, na qual inesperadamente, pode ser humana e briguenta. Entre uma pauleira e outra, teve transição apertada como atriz, na qual pode viver muitas vidas, tão diferentes das dela. Conseguiu continuar como produtora cultural e escritora. Ah, as publicações...! Os filhos que demoram a pegar estrada, mas fica feliz quando ganham o mundo.
Capítulo 9 da coletânea de sofrimentos gourmet: busca o caminho do meio com terapias alternativas, tratamentos espirituais por trocas, se movimenta, é ativista, come mais ou menos bem e viaja. Ah, como se meteu a viajar fazendo quase tudo por permutas e com duas férias por ano! Sacou com juros e correção monetária o quanto não pode ficar centrada com o pé na estrada no jornalismo.
Mas porque ela lista sua vivências nesse compilado de privilegios? Pra admitir que se aborrece com os amigos chorando problemas gourmet porque também tem. E pra se constranger enchendo os ouvidos das parceiras de "literapia" com white's peoples problems. Mas com elas aprendeu a não pedir mais desculpa.