quarta-feira, 7 de junho de 2017

Território das Resistências

Nesta quarta quis tomar banho pela primeira vez depois de tirar a vesícula. No hospital me lavei correndo, com medo de cair, acelerada também pelo frio, sono e receio do chão depois que derrubar a bandeja de jantar. Tive tanta dor nas costas da maca no pós operatório que comi de lado na cama da enfermaria, tentando administrar as dores de gases no ombro, mas minhas manobras desajeitadas de sobe e desce do colchão fizeram a tigela de sopa se espatifar em mil pedaços. Sobraram estas lembranças em flash porque o máximo que sentia era vontade de deitar com tanto remédio, sono e dorzinha de barriga impossibilitada de tossir, suspirar, rir ou soluçar. Os professores de pilates têm razão: a barriga é a casa da força.
Pouco antes de entrar na faca na segunda escrevi sobre olhar o corpo como cartografia das nossas superações: são sete correções de glaucoma congênito, mas uma apendicite suporada e hérnia que a cicatriz desta última deixou (descobri isso explicando as operações pro anestesista ou pra médica assistente). É bonito pensar em nós mesmas como resiliência em processo, que vai que fortalecendo conforme os baques vêm. Bom, foi meu modo cabeçudo de dar perdido no medo e na fome do jejum que se esticou pelas burocracias que não achavam minha autorização médica: de medrosa que sou adiei a cirurgia duas vezes. Isso pode ter emperrado mais um pouco me internarem e operarem segunda, quando já tinha perdido quase todo o cagaço.
Hoje depois da burocracia de atestado pra lá, guia pra cá, voltei louca por um banho e esta história começada segunda pelas redes sociais tinha ficado em mim. Tomei susto com o roxo na barriga tanto quanto me assustei ajudando minha mãe no banho quando ela operou o seio - e também tinha um roxo. Estas marcas e as cicatrizes que ficam - em nós branquelas, não são a maioria que permanecem - carregam histórias de passar por cima de dores, enjoo, aflições, riscos... E sobreviver para contar as histórias - estas que nós, as narradoras amamos.
Mas era uma barriga inchada porque como me explicou a médica, parece que por fora não mexeu muito, mas por dentro são cortes e mais costuras. A gente não sabe se ensaboa correndo ou vai devagar. Estou tateando um novo corpo e ele ainda não me pertence. Entrei em conflito com ele depois de engordar após a apendicite, de outros tratamentos me sanfonarem e não emagrecer tanto quanto achava que devia. Devia segundo quem cara pálida? A gente milita tanto em sala de aula, nos movimentos feministas, mas parece que conosco sozinhas é que o bicho pega. Era como se só engolisse a aceitação da barriga engordar em quem teve filho - as outras jamais! Mas são duas operações abdominais, fora os tratamentos de sono engorda-emagrece. É uma história sobrevivência para celebrar.
Mais tarde, falando com minha prima irmã nervosa com sistema online de nota do microempreendedor individual dando pau (porque já tenho que sair da leseira da anestesia a todo vapor) ela me lembrou do básico: operou, tá viva. Hoje é o dia da gratidão. A $ é um coadjuvante neste contexto. São dez vezes em que entrei na faca, uma só pelo vídeo. Mas sigo semi inteira, semi magra, mas inteiramente pega de surpresa por este olhar.
A médica assistente, mais presente que o principal que só desceu do panteão dos deuses pra tirar as pedras e a vesícula, disse que ele preferia tirar os curativos no consultório. Olhando e mexendo meio desajeitadamente não entendo se tem esparadrapo manchado ou a pele indica que passou uma cirurgia por vídeo ali. Passo sabão e bucha pulando os trechos que prometem fortes emoções demais. Segue um território nebuloso de aceitação, vulnerabilidade e redescoberta.
Lembrei da oficina de fotografia e gênero que uma amiga dá. Não se fotografa a barriga inchada operada, a não ser que seja pra simpósio de saúde, TCC ou artigo médico. Quem acolhe a mulher que adoece, opera, engorda, emagrece, mas não muito, segundo a régua estética que ninguém consegue seguir? Acho que em primeiro lugar ela mesma: que soma de sobrevivência a celebrar eu me tornei! De novo no meio deste destino um contratempo de saúde me atropelou (porque a sensação é bem esta voltando de anestesia geral), mas eu ainda estou aqui! E sigo resistindo. Mas principalmente aprendendo a lidar com um corpo que não dá a luz, mas ainda assim engorda, emagrece e me tira do lugar de conforto. Deve ser um treinozinho pra empreitadas com menor espaço de contemplação e descoberta. Seguiremos teimando. E aprendendo a lidar. Que corpo e sobrevivência também é aprendizagem.

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