domingo, 9 de setembro de 2018

A ponto de comer o hidratante

Nunca foi boa em dietas. Sempre praticava mais dias de enfiar o pé na jaca e sair do controle do que disciplinados. Por décadas foi a rainha da cólica de intestino e nuns exames já meio produzidos pra dar esse resultado, descobriu uma intoleranciazinha, mas estranhava que mesmo em temporadas de abstinência do queijo, as dores batiam ponto. Até que ouviu a nutricionista, fez umas experiências, tirou o glúten, quando distraiu e colocou de novo na alimentação... Não só rolou da velha cólica como voltou a ter dor de estômago. Tirando o glúten o corpo ia ficando em paz de novo, mesmo quando enfiava o pé na jaca com os derivados de leite. Pronto, era isso o glúten. Foi quando ela, que já não comia carne há uma década, se sentiu naquele pesadelo em que desconfiou que fosse parar caso virasse vegana: não é possível se confraternizar com mais ninguém. O vento, o ar, a água e a terra têm glúten. Nunca se ligou como era viciada em pães, bolos, bolachas e que comia muito na rua devido a isso. Já está quase feito drogada:
- Estou há quase uma semana e meia sem glúten! Só por hoje!
Sente aquela irritação sem fim de quem não pode comer 2939212384134 coisas, mas quer todas. Vai tomar banho e quer comer o hidratante, tão cheiroso aquele creme. Certeza que é para a pele?
Volta à infância. Vai encontrar amigos e carrega lancheirinha: abre sua boia particular sem glúten. Como diversas vezes não tem gosto, faz um exercício budista para não dar na cara o quanto a adaptação a irrita profundamente.
Comprou pães sem glúten, sem lactose... Desenvolveu uma teoria:
- O pão que o diabo amassou é sem glúten! Veja que embalagem simpática: "ainda mais gostoso se aquecido". Só é comível aquecido. Caso contrário, nem sola de sapato não deve ser tão ruim.
Acha a vida fanfarrona. Agora que uma parte significativa da civilização se adaptou aos vegetarianos, não encontra mais nada em lanchonete, bar, restaurante, boteco, nem cafeteria do Sesc sem glúten. Sorri com fome e pede uma água de coco. Ou um açaí. Neste frio, o estômago segue com fome. Está feito modelo bulímica: cheirando o que não pode mais comer.
E na cozinha então? Agora que tinha chegado ao nível comível cozinhando sem carne, tem vontade de levantar, chamar o encarregado, reclamar da comida... Então se lembra que ela mesma é que fez, engole, mas sonha com um doce ou salgado que se pensar muito, é capaz de também dar reação.
O marido começou estranhar uns sumiços em casa..
- Viu meu creme de barbear?
- Comi.
- Mas você não passou mal?
- Ah deu um piriri, mas super de boas pra quem não tem mais cólica de intestino, nem  dor de estômago.
Preocupado, deu cabo de todo arsenal cheiroso feminino: hidratante, creme de cabelo, para as mãos, os pés.
Ultimamente os amigos têm estranhado seu sumiço.
Mas está numa empreitada terapêutica empreendedora: criou os intolerantes anônimos. Tem ouvido muitas noites, de outros irritados feito ela:
- Olá meu nome é Antônio e já estou há um mês sem glúten.
- Boa noite Antônio - devem responder todos em coro.
Será esta a tal síndrome do intestino irritado?
Não querem saber. Estão se organizando para descobrir quais cremes farão menos estragos caso desapareçam com eles dos banheiros de casas, furem a dieta e comam qualquer coisa cheirosa para pele que não tenha glúten.
Esperamos que sobrevivam.

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