sexta-feira, 24 de julho de 2020

Arte como canoa para travessia

Depois de meses entocada voltei à travessia duas cidades para lá de casa. Há mais de quatro ciclos lunares entocada, com espaçadas escapadelas de abastecimento, auto cuidado e ajuda aos pais. O mais perto possível. Nas poucas saidinhas mais contramão de casa, rezei na condução pública, tomei banho de álcool em gel em cada encostada.
Mas esta semana subi na moto como quem sobe o Corcovado. E a despeito do motivo melancólico, fiquei maravilhada com o sol na cabeça, o vento no rosto, o reconhecimento de cada café, bairro, parque, avenida da cidade em que trabalho e o espanto de só ter atingido esse pertencimento lá por ter criado raízes no trabalho pela 1a vez.
Apesar do coração na mão, meu companheiro tinha razão: o lugar é bonito. Não sabia o que dizer, talvez meti os pés pelas mãos, mas as máscaras também previnem bolas fora para tagarelas como eu. Ainda não tinha vivido a estranheza de consolar e me despedir sem abraços. Bom, estávamos meio de bode da pasmaceira do isolamento. De sopetão ficou intenso e derradeiro demais.
Lá para as tantas não sei se a asma me tirou o ar, se não saber lidar com os momentos corta pulsos me tirou o chão ou se aos 45 do 2o tempo tive medo de estar no grupo de risco e longe de casa, tentei tomar um ar com o marido, que trouxe um capuccino pra sei lá, eu não me partir em lágrimas. Há meses sentia falta desses cafés em que os baristas põem tanta coisa, que meu pai diz que comemos uma torta e não tomamos um drinque cafeinado. Me despedi atabalhoada e de novo, a garupa me envolveu em memórias e afetos: recordando e celebrando cada esquina santoandreense, fazendo festa entre o vento, cabelo e o capacete e pela primeira vez em décadas abraçando o sol felizaça. Branquelos como eu não tinham boas memórias com o sol antes do corona19.
Aterrizei da carona em casa e já despenquei culpa abaixo. Afinal, tinha perdido minha segunda mãe. Me senti mal pela animação de sair da toca depois de quase criar mofo nela. Minha gatinha Peteca miava enlouquecida. Entrei num estado roupão: só queria sofá. Acho que meu marido, que tinha ido ao banco, adivinhou e trouxe fast food para nos animarmos com o almoço junkie. De lá para cá embarquei numa rave burocrático-acadêmica entre videoconferências, repartições públicas e home office. Não dei conta de muito do que costumo usar pra manter a sanidade em tempos sombrios. Ainda assim manter o que não tinha negociação de prazo foi uma despistada boa da tristeza. E sabe-se lá porque boa parte dos sensíveis como eu tentam dar perdido no mal estar. Obviamente que encontrar o que ela me deu ou amigos perguntarem como estava já produziram muito desaguar.
Quem me resgatou desse vai e vem do luto foi - sempre ela - a arte. Partilhei estudos e práticas de Teatro do Oprimido(TO) numa conferência sobre ensino cênico na internet. Costumo resgatar os causos do começo do TO e dos praticantes pra contextualizar nessas trocas. Podia usar uma meia dúzia deles, mas contei do grupo das Marias que fazem faxina e atuam. Minha 2a mãe cuidou da minha casa e da de vários parentes por décadas. Estudar o que se ama tem disso: a gente se melhora no processo. Há dois anos estudei reforma trabalhista e esse grupo das Marias com meus alunos, entre os quais muitos já limparam casas, mudei meus olhares e questionei várias coisas com minha 2a mãe. Mas quando ela dizia que não era como desconfiava que podia ser, ninguém mudava a visão dela...
Foi ainda a música que me aproximou dela na semana quase se esvaindo: estudei percussão e canto de trabalho. Nessa segunda pesquisa, os professores partilharam canções de comunidades interioranas de trabalhadores em que depois deles entoarem a letra, somos convidados a emendar criando versos e então nossos mestres voltam ao refrão. Fiz versos pra amiga: "minha amiga foi embora/ já chorei meia semana/ com a cantoria lembrei/ que a vida é boa".
Já estamos há mais de 120 dias tentando acostumar com as incertezas. Com a passagem da minha 2a mãe, não tenho mais ideia quando os rompantes chorosos voltarão. Mas uma coisa tenho sentido pulsar nessa entressafra sanitária que estamos tolerando: a arte é minha canoa para travessia desse maremoto; E você, em que suporte embarcou para não temer essa tsunami?

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