quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Enquanto eu viajava

Insônia na viagem: pode a divina providência ser mais fanfarrona que isso? Ouço a gatinha do hostel Cape Town miar pela janela, em Cambará do Sul. Os galos começam sua sinfonia matinal. E eu, como quem não dorme, quero matá-los às estilingadas atrás da cortina. O teto é de madeira, lembro do meu avô, dos primos, cheiro de terra, café e chuva do norte do Paraná e a saudade me inunda. O interior do Brasil é bonito o suficiente pra nos fazer sentir que a energia criadora divina não é uma invenção nossa por conta do vazio existencial. Bebi um pouco de vinho, ouvi Maná e também Trem Bala, de Ana Vilela, com os colegas deste albergue interiorano na noite anterior. Este hostel aliás é o único em que vi famílias inteiras se hospedando nos quartos coletivos. Conseguimos aproveitar o finzinho do expediente da padaria para comer cueca virada, rir e filosofar da vida, tomar café e improvisar uma janta. O sono se vira do avesso dormindo em quarto coletivo, mas também podemos ensaiar um arremedo de família num dia e pouco de passeios, piadas, refeições, cantoria e confissões entre "os mais novos amigos de uma semana atrás". Meu livro, o adulto, que comecei depois das primeiras semanas de ócio criativo das férias, se organizou em pedaços dentro de mim. Ensaio plugar os insights emocional, sociólogico, psicológico e da minha busca entre um trabalho, viagem e uma epifania ameaça inundar essa cama. O galo porém me convoca a aterrar e desta vez não o quero matar, seria ligeiramente vexatório acordar o povo do quarto num choro de conexão, sintonia e significado.
E nem a cachoeira ajudou disfarçar minha cara de noite mal dormida
Almoçamos horas depois das andanças pelo cânion de Itaimbezinho, mas meu corpo resolveu ter fome entre quatro e cinco da manhã seguinte: ah, esse sistema digestivo fora de órbita ainda me paga! Apesar do nome do restaurante no almoço conter preocupantemente um galeteria na fachada finalmente consegui comer sem carne, nem me entupindo de lanche e depois terminar enfezada. É que fazer isso no interior do Rio Grande do Sul é uma façanha. Uma horta nos abasteceu com salada orgânica, mas sem falir na refeição - esta e uma das coisas que seguem me brochando em viver na cidade grande: os preços dela. Matei saudade de torteli com moranga que conheci na 1a vez que choquei  gaúchos na serra dispensando o churrasco de chão. E o creme de baunilha tinha qualquer coisa das sobremesas da minha mãe... Ou seria da madrinha? Nem tudo foram flores: a farra dos derivados de leite fez a cólica de intestino me pegar de um jeito que senti saudade do banheiro com buraco no chão do meu avô. Sei lá, nestas horas agachar sempre parece que salvará das pontadas intestinais. Tenho muito do lado brejeiro da única amiga jornalista paranaense (da região em que há anos tinham banheiros com buraco no chão). Ela foi uma das poucas que me alertou quando uma várzea trabalhística chamou pra trabalhar onde ela pagou seus pecados antes de mim. "Fale sobre sua prisão trabalhista com as manas. Eu falaria": vou criar essa campanha. Teimamos em caminhar horas entre os mirantes do único cânion que deu tempo de visitar: e não é que a névoa e chuva do começo da manhã resolveram dar uma trégua? O guia explicou que antigamente havia um único continente na terra e quando ele separou, esta região vulcânica deu origem à paisagem local: uma estupidez de bonita! Desse jeito é fantástico aprender ciências. Se é que entendi direito... Do cânion pra cima, Rio Grande do Sul, do penhasco pra baixo, Santa Catarina. Prova visual de que as fronteiras são uma cretinice indefensável. Estudo de campo geográfico. Ele explicou que a Trilha do Rio do Boi tem esse nome porque o gado despencava. Depois contou um causo gauchesco fantástico: estava como as crianças que conto histórias - botando a maior fé... Até que ele deu uma brochada enfiando a explicação científica no final. Na saída do parque soubemos que o pessoal está sem receber há três meses. O que mais o governo federal abastecerá alem de seus bolsos e o judiciário? A turma lá ama mesmo o lugar, pois segue atuando voluntariamente, por doações, pra divulgar e manter o Parque de Aparados da Serra. Me aproximei duma parceira paranaense de viagem, também arquiteta, mestiça e de volta à casa dos pais: parecendo a mana que voltou ao Nordeste! Cáspita as histórias se repetem! Conheci também um professor de inglês que dá aula numa escola em que queria ensinar teatro: faço minha auto propaganda espontânea e... caramba! Dormi sonhando com aula cênica em inglês!
O Guimarães Rosa têm razão: sertão é o que não conhecemos. O país é uma escola interiorana pra aprendermos fazendo, muito embora os transportes e o marketing de turismo nacional só divulguem o já congestionado litoral - e a maior parte dele, aliás, beeem parecido, comparado à diversidade sertaneja. Cada um dos sotaque, acolhimento, simplicidade, comida interiorana, histórias de rodoviária, colegas de viagem e de área do banco da frente no ônibus, hortênsias de beira de estrada, fotos antigas, gentilezas, memórias, identidade, livraria-centro cultural-café Miragem com empreendedora ativista dos costumes gauchescos perdidos e causos fazem a via sacra até lá sem carro valer a pena. Até Guarulhos, há três partidas atrás, me surpreendeu por amanhecer mais vermelha, aberta e sem nuvens há uma semana! Viagem é uma meditação em processo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário