quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Quase com a Mão na Terra

Furei uma madeira pela primeira vez. Também amarrei uns bambus e pintei parte dum playground construído a partir de material da natureza. Ficava um caco de cansaço na sequência. Mais caipira do asfalto do que minhas gozações podiam prever. Porém os facilitadores do retiro Construindo Playgrounds com Materiais da Natureza, que fiz em Guaporé, substituindo o Caminho das Artes, em Canela, adiado porque o calote aos servidores gaúchos prejudicou o planejamento todo, foram compreensíveis. Não devo ser a primeira perdida que recebem na Cidade Escola Ayni, no interior do Rio Grande do Sul. Como fui parar lá? Alguma indicação online já tinha me deixado interessada na proposta: uma espécie de bosque escolar, sem salas, matérias, provas, que pode usar pedagogia de projetos, mas não se reduz a ela... Quase uma desescolarização em meio a tanto verde que até lagartos qiase com porte de jacarés encontramos! Havia professores, arquitetos, mas sobretudo fãs de criança e entusiastas duma educação menos engessada, além de pessoas sem medo de olhar para dentro. Não fui a única a achar que a proposta já estava a todo vapor, cheia de crianças: porém são os adultos e professores, em sua maior parte, que estão construindo e se beneficiando da iniciativa toda por enquanto. De qualquer modo, não deixa de ser gratificante ter apoiado o plantio de sementinhas por lá. Entender um bocadinho a mais de permacultura e da adaptação de bioconstrução para a realidade úmida do interior gaúcho. Parceiros de Santa Catarina, interior de São Paulo, Rio de Janeiro com suas ideias, uma mais potente pra aprimorar o mundo que a outra... Animador conferir tantos querendo se melhorar pra esparramar uma educação mais humana, menos engessada, mais próxima da terra, lúdica e menos cristalizada. A princípio não entendia tanta exaustão com minhas poucas ralações debaixo do sol e minha sangria desatada por chocolate, mas... Menstruei dez dias antes. Achei bem simbólico porque fizemos vivências ligadas à nossa criança interior, em que experienciei de novo a sororidade de acabar de conhecer uma mana, praticamente desenrolar meu cabo USB invisível, plugar nela e chorarmos juntas dores que sentamos em cima para não nos mostrarmos frágil... Mas é na vulnerabilidade que mais somos acolhidas e percebemos que não estamos sós. Entre um ensaio de construção aqui e umas comidas vegetarianas acolá, muita troca das experiências, sonhos, encantamentos e descobertas nos expressando pelo bastão da fala. Devo reconhecer que parte dos facilitadores tinha uma abordagem meio new age, em meio a qual minha maneira cabeçóide de captar as coisas se perdia. Teve momento ouvindo sobre geometria sagrada em que minha resistência foi tanta que não continha o sono.
Rolou uma atividade atrás da outra, sempre convocadas por uma chamada brincalhona dos multiplicadores imitando uma gralha, que avisava para o retorno ao estudo em conjunto. A maratona me deixou exaurida e sempre me pegava escovando dente, tentando recarregar as baterias ou me localizando entre tanta novidade. Um dos momentos em que não me contive foi quando compararam um pouco mais as culturas ocidental e maia, reconhecendo a primeira como machista. Ouvi uma culpabilização da mulher por sua desconexão com intuição, cuidado com os outros meio disfarçada... Fervi e não dei conta: partilhei que acredito que todo um sistema nos oprime involuntariamente até chegarmos neste ponto e que percebo espaço tanto para militância com o público que lido e vejo machucado injustamente, quanto para sentar e olhar para si e que há contextos em que só um ou o outro são necessários, noutras situações os dois se complementam, além de sermos privilegiados em poder transitar entre ambos, já que não tinha um negro nas vivências, por exemplo. Pronto, o núcleo socialista feminista do retiro se "linkou" como um ímã. Enfim, não largo a militante nem no mato com inseto me comendo os pés, trabalho comunitário e acolhimento de pessoas inacreditavelmente                                  
diferentes. No único momento livre em que tentamos ir numa cachoeira, me encantei com as árvores se fechando em cima de nós, não chegamos a terminar a trilha, era mais comprida e enigmática que as urbanas retiradas esperavam (porque confiar em caiçaras e caipiras? Nunca é tão facinho quanto asseguram), mas de novo as manas se reconheceram e debateram até longe dos palanques e das parcerias mais oprimidas precisando de nosso apoio. Por fim, um túnel humano encerrando as atividades, com colegas abraçando, beijando, dando carinho ou apoio no ouvido tinha que me fazer chorar não? Afinal o corre corre, cansaço e ir até o último ânimo sobressalente não eram por acaso. Me maravilho que mais e mais percebam como a educação quadradinha precisa ser reinventada. Chateio um pouco por
desconfiar que não dê conta de mato o tempo inteiro na minha vidinha urbanoide, mas me espanto das minhas amarrações incomuns entre o ensinar, atuar, comunicar, militar e cuidar ressoem longe e entre novos "velhos camaradas de jornada". Teimei tanto com os materiais naturais na tentativa duma biocontrução, mas acabei fazendo melhor registrando parte das atividades.
Numa dinâmica interativa passamos vendados por um labirinto em que ouvíamos a todo tempo para levantarmos a mão e pedirmos ajuda quando precisássemos, sem isso permanecíamos trombando nas cadeiras e fios, tinha toda uma intenção de fazer ligações com o cotidiano fechados nas nossas dificuldades e percepção de que temos que fazer tudo por conta. Muitos se irritaram ou emocionaram... Eu já me vi cigana dançando perto do fogo quando colocaram a música meio maia... Artista, médium ou ambas? Me senti protegida pelo escuro das eternas risadas com meus tombos de sempre, foi lúdico demais entender como os jovens piram num jogo, me senti entregue ao game adaptado, mas me angustiei vendo os amigos sofrendo sem solicitar apoio depois que pedi auxílio, mais do que experimentando a confinação imperceptível no labirinto sem saída criado para a atividade. Experimentei a confirmação daquela explicação budista de que vivemos no samsara, que é inebriante demais para nos propormos e termos disciplina para meditar e transcender: uma hora um amigo, noutra uma viagem, mais adiante um namorado nos dispersam...
Vivi para ver o fundador afirmar que não era comunista, sonhar alto com o Pão de Açúcar se abrindo para beneficiar a comunidade, contar que os colaboradores trabalham quatro horas para ver o sol e eu precisar contar que ele parecia a vlogueira Jout Jout feminista na prática, mas querendo fugir aos rótulos no começo. Temos parceiro de sonho até três estados abaixo, numa região que se revela preconceituosa em detalhes e ao mesmo tempo visionária na empreitada coletiva que viabilizam por lá. Entre um choro, respiração, ralação e cliques, seguimos com as utopias se complementando.

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