Meu vizinho toca trombone. Pela
primeira vez tenho achado tocante: um instrumento de sopro e seu proprietário
resistindo à tristeza que chegou como brinde do isolamento. Antigamente tinha
bode dele. Pensava que era devido aos gostos musicais diversos. E quem me vê falando assim pensa que mudei a
percepção há um baita tempo. Foi só desde a quarentena mesmo. Parece que só a
impossibilidade de ligar na portaria e perguntar qual o apartamento eruditamente
musical para entregar couvert artístico já nos aproxima. Talvez só o medo de
adoecer ou perder um ente querido nos refresque a memória que na hora desse
frio na espinha, estamos todos na mesma roubada.
Cruzei o prédio dele na caminhada
para espantar a melancolia. O jardim que plantamos no conjunto em que moro permite
que andemos sem tanta exposição. Os vizinhos também têm se distanciado nos
encontros involuntários. E pela primeira vez sou grata à quebrada em que vivo.
A raridade das saídas é tanta que tenho exercitado fortemente a imaginação,
tentando fazer de conta que o córrego perto não carrega sofás, material de
construção e esgoto. As andanças têm sido contemplativas. Não sei até que ponto
ajudarão no condicionamento.
Não é só essa caminhada que virou um
evento. Uma amiga de estudos enviou um vídeo em que a pessoa se montava para
jogar o lixo, como quem vai à festa. Pensei que demoraria mais para chegar a
esse ponto, mas estava praticamente negociando toda fast food restante para o
marido me deixar escapulir rapidamente. Como tenho asma, ele tem se predisposto
a resolver lá fora a maior parte das questões. Não subi no salto para ajudar a
encher a lixeira, mas saí achando a rua linda, as árvores incríveis e as
pessoas uma simpatia. Me senti como minha finada avó que elogiava todos os
amigos e nomes de quem apresentávamos. Encontrei o jovem vizinho. Ficamos
conversando como se tivessem saias de bailarinas entre nós, mantendo uma distância
saudável e criativa. Nem sei se noutra ocasião prosearíamos tanto. Mas de
repente as pessoas com as quais trocávamos cumprimentos secos, ao nos cruzarmos
nos corredores nesta quarentena, se não fosse perigoso nos abraçaríamos
empolgadamente. Lembrando do vírus, obviamente nos contemos.
E a saga na rua com rápidas saídas
segue... Consegui barganhar uma escapadela com meu companheiro e fomos à feira
semanal. Como descartei as últimas máscaras ganhas da dentista, improvisei
proteção com uma bandana amarrada ao rosto. Soa meio bandida estilosa e também
usava pra escrever na lousa sem falta de ar lá no trabalho. Antes do
adiantamento do recesso, claro! Nunca um pastel na esquina foi tão empolgante!
Aumentaram a distância dos clientes aos feirantes com faixas. E mesmo nas filas
as pessoas não ficam mais no nosso cangote. Sentamos no banco da rua e vimos as
luzes do shopping na cidade ao lado. Deve estar fechado. Sabemos que prevenimos
riscos para nós e os outros, mas lembra as mais aterrorizantes séries distópicas.
Crio para despistar memórias
audiovisuais que são gatilhos para deprê. A vizinha veio ajudar com as injeções
do tratamento contra alergia de ácaro, para que pudesse fugir da farmácia. A
agenda para meia dúzia de coisas que planejei fazer para não ficar ansiosa diminuiu.
Conversamos tanto quando veio, que sugeri jantarmos quando o apocalise acabar.
Será que só na periferia as pessoas se aproximam? Emocionalmente né:
fisicamente damos passos pra trás.
Lá na escola a gestão também se
preocupa e pede envio de exercícios, porém quando fui encaminhar no zap dos
estudantes, vi que já estavam sem banda para as atividades do site da
prefeitura, imagine para acessar meus vídeos de arte? As exclusões dos
aprendizes são bem mais emmergenciais do que a rede de ensino dá conta. Para
não voltar à angústia devido nossa limitação na ajuda possível, volto aos
estudos. As aulas seguiram online, o que nos mantém ocupados, muito embora
estranhando a simulação de normalidade das faculdades. Ao menos entre os nossos
seguimos ensaiando sanidade... Nem que seja para compartilhar ignorâncias!.
No embalo dos meus desconhecimentos, vejo filme
e série para fugir criativamente daqui ou repor as esperanças na humanidade,
depende do dia. Em outras ocasiões falo sozinha na janela. Não pago mais de
maluca: nas janelas da frente há outros tagarelas. Pena que minha câmera é
ruim: daria um curta metragem e tanto! Inspirada pela criatividade que emerge,
crio. O que me abastece do que tenho precisado nos últimos tempos: expressão e terapia. Quando não é dia de
imaginar que estou num divã com minha psicóloga na internet, respiro. Concentro
em mantra, imagens, sonhos, velas. Mas respiro, deixo que as maluquices
internas surjam e passem. E pela primeira vez na vida consigo me distanciar das
emoções. Lapido os sentimentos para que sejam menos rústicos. E com isso parto
para a próxima semana.
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