A volta à vida não foi cheia
de abraços como imaginei. Tínhamos nos adaptado tanto à prevenção, que
agora
acenávamos cabeça, dávamos tchau, olhávamos simpaticamente, desenhávamos
sorrisos nas máscaras e especialmente gingávamos para fugir de ameaças de abraço.
Como os amigos fogueteiros previam, é
inimaginável como retomaremos os beijos e ainda mais ressabiada a volta do sexo.
Ah, a internet. A
dificuldade será desmamar desse vício. O mais improvável se ajustou ao online:
dança, culinária e até a medicina. Ficamos ainda mais fora de ritmo: as
plataformas de vídeo não dão conta de tanta demanda. Mas temos desenvolvido todo
jogo de cintura que as grandes cidades nos furtaram. E por falar nas
megalópoles, o trânsito delas foi algo que não deu a menor abstinência.
Do trabalho sentia falta. Da
minha antiga experiência tive medo do horário de pico. O primeiro ônibus estava
meio vazio, mas matérias e pesquisas indicavam que as vítimas da doença foram
tantas que desincharam regiões populosas. Nas capitais vemos reflexo nas
conduções mais livres. Me silenciei comovida. Já na segunda condução tive medo
de abuso, uma tradição nos vagões metropolitanos. Mas peguei um trem com todos
trabalhadores felicíssimos voltando do confinamento: cantavam, sambavam e até
improvisavam versos. Me senti num “pagodão” e até batuquei num banco que me
concederam. Na quarentena, me escondi nas trincheiras da cozinha demais e devo
estar convincente como grávida – só pode! Sobreviver aos tempos pandêmicos diminui
esses pequenos dramas. Faço percussão na janela também.
Chego à escola após sambar
por estações. Os colegas estão tão animados com a volta que rola praticamente
uma rave na sala de professores. Os
hiperativos aprenderam a tocar agogô e bordar. Os militantes adaptaram seu
engajamento para o ativismo virtual. E os deprês
aumentaram as doses de tratamento. Em meio à social, agora com sonorização afro
brasileira, chegaram os estudantes. Não tínhamos idéia de como seria. A
princípio pareceu rever ex. Eles, com os cabelos em pé com sobrevivência e
saúde. E nós, afogados em demandas de documentação que não dialogavam com a
realidade deles. Sobreviventes se revendo. Quando fomos para a sala, tiveram
curiosidade de experimentar o processo artístico que aprofundei em casa e
divulguei online: artes corporais na quarentena. Cansados de tanto aguardar a
gestão adaptar a escola para outras linguagens, sequestramos as cadeiras e
mesas para o pátio e com elas fizemos uma instalação. Como era de se esperar, a
gestão quis me matar. Mas pedia por isso há tanto tempo e agora com todo estudo
acadêmico em dia, tinha referências de sobra para defender o projeto com os
aprendizes. Nisso os professores seguiam os mesmos: “argumentadeiros”. Os
estudantes? Improvisaram, criaram, apresentaram, foram criativos e se
divertiram como se não houvesse amanhã. Nenhum de nós tinha como saber se
haveria mesmo.
Voltei realizada e parei na
academia. Por precaução tínhamos que fazer individualmente atividade aquática, com
uma máscara de muitos buraquinhos fininhos e nuns horários malucos. Tive até
saudade das colegas de turma barulhentas [suspiro]. Meditei e chorei em meio ao
cloro.
Cheguei desnorteada de fome
e pedi entrega de lanche num comércio local. Tanto tempo presos avariou irreversivelmente
a economia. Começamos comprar tudo nos comerciantes pequenos do bairro. Eles
agilizaram a entrega que não faziam. Há grandes redes dos mais diversos
segmentos de varejo falindo ou estudando novos negócios. Deixou de fazer
sentido conhecer restaurantes ou cinema distantes. E em cidades em que qualquer
deslocamento demanda horas, depois de tanto interiorizar, agora só ficamos
horas no transporte se morrer a mãe lá na outra região.
Ainda comia quando meu
marido chegou do hospital. Nos serviços essenciais em não deram EPIs acontecem
processos trabalhistas televisionados – a mídia ficou combativa. Perdemos muitos
na linha de frente. Algumas mortes incomuns ajudam o avanço das pesquisas. Com
todos países temendo o mesmo, há corrida pela vacina e oferta de prêmios científicos.
Uma música nos conforta e vamos
à janela. Agora a arte está nelas, algumas até com cortinas chamativas, luzes e
sonorização potentes. Os grupos se dividiram em vários artistas solo. Cochilamos
ouvindo a apresentação.
Me alongo cedo. Toda
expressão em grupo foi para praças, onde todos se distanciam para praticar. E
de tanto ocupar as ruas, já não há mais medo!
Corro ao ensaio. O teatro
ainda precisa de distanciamento: agora só apresentamos na rua. Medito voltando
na derradeira condução. Depois de tanta preocupação, até os imprevisíveis se
renderam ao auto cuidado digital. Vimos muitas lives, selecionamos e cada um acompanha suas preferidas.
Ainda navegando, minha irmã
me escreve: viajará sozinha. Mochileiros viraram peregrinos independentes e quem
temia caronas, depois desse pesadelo encara. É compreensível: uma solidariedade
surpreendente emergiu da nossa ruína. Uma transmissão revela que a revolta dos
principais impactados nisso tudo prendeu corruptos num navio turístico em nossa
costa. Juízes exigem punições. Já o povo... Torce por eles!