domingo, 3 de maio de 2020

Panela de afeto na soleira

A voz do sobrinho chegou pela janela, vinda da casa ao lado. Desde o começo do isolamento alegrias
como essas mudaram de tom. Ouvi-lo agora a entristecia: haviam decidido não se rever tanto quanto antes, pois parte dos parentes tinha grupo de risco em suas casas e nem todos podiam fazer a quarentena conforme recomendado por órgãos de saúde. Depois desse cuidado, a risada dele dava uma saudade incômoda. Tinha consciência do privilégio que dispunha: ter conseguido migrar seus compromissos para conferências no home office e seu companheiro passou pelo mesmo processo. Ainda não sentiam os temidos efeitos do confinamento na economia doméstica que atigiam outros colegas. Por isso mesmo evitava transformar a falta da família da irmã vizinha num drama de proporções exageradas. Mas nem por isso o buraco da ausência deles deixava de se fazer sentir periodicamente.
O casal produzia e ensinava arte. Quando sentiam falta de outras conversas que não as respondidas pela voz um do outro, pegavam carona em outras melodias - literalmente! - e se sentavam com seus instrumentos, embalados pelas canções alheias com as quais faziam cover terapêutico e acústico. Num desses "saraus de dois", cantaram algo sobre comida - um deles estava cozinhando, começou a cantarolar e o outro foi buscar seu instrumento e acompanhou. De algum modo a música ressoou na irmã, que começou deixar panelas com comidas que eles gostavam na soleira da porta de entrada, apertando a campainha na sequência e voltando para sua casa rapidamente.
Na primeira comidinha entregue, não encontraram só massa caseira, com molho de tomate e queijos frescos. Ambas lembraram - uma comendo e a outra limpando a bagunça de sua pia - das avós que tanto faziam encontros regados à culinária italiana. A que recebeu o prato amarradinho na porta, com guardanapo bordado à mão, até chorou comendo. O marido não estranhou toda aquela sensibilidade: percebia que quando pararam de ver os vizinhos com frequência, emoções antes toleradas agora vinham à tona e tinha se tornado comum conviver com a mulher mais à flor da pele. Ele também gostava de cozinhar e estava se deliciando com a forma da cunhada se mostrar presente pelos ingredientes.
Assim que as memórias os afetaram, os artistas voltaram à cozinha, inspirados. Um fez suco de fruta colhida do jardim e a outra, sobremesa com sabor de roça. Quando se deixaram atravessar pelos aromas e tudo ficou à contento das lembranças que os estimularam a produzir tudo aquilo, guardaram nas embalagens mais delicadas, amarraram com panos com ar de piquenique, foram deixar na porta da irmã, tocaram a campainha e deram no pé. Naquela tarde foi a cunhada e vizinha quem criou um ritual, colocou música, incenso, sentou para comer o presente da irmã e seu companheiro e... chorou!
Passaram o confinamento neste escambo de sabores, recordações, aromas e alquimia. Às vezes a cunhada aproveitava que o marido tinha que dar plantão e fazia uns horários malucos e encomendava ingrediente fresco da Zona Cerealista - ao contrário da vizinha, não tinha jardim e horta. Mas quando cheirava as especiarias diversas que chegavam da rua, tinha a criatividade e a generosidade ativadas, produzia um prato para comer gemendo e claro, presenteava a irmã e o cunhado.
Estes dois, por sua vez, deram para conversar com plantas, misturar folhas e frutas, trocar receitas pelas redes sociais e inventar moda entre a pia e o fogão. Sempre se surpreendiam com as novidades, lambiam os dedos, agradeciam aos amigos (entre eles já não era novidade o talento dos dois) e corriam ansiosos com a marmitinha do amor na soleira da mana na casa ao lado.
Nunca antes a vizinhança sentiu tantos aromas. Jamais os trabalhadores dos comércios locais tiveram tanta dó dos moradores das casas germinadas não se encontrar por tanto tempo. O sobrinho ouvia saudoso algumas crianças furando o isolamento, de máscara em suas bicicletas nas calçadas e espiava da janela, com a barriga afetuosamente preenchida pelos tios. E para os pequenos na rua, nunca o amiguinho do lado de lá do vidro e grade pareceu tão tristonho.
As folhas dos calendários demoraram a cair. Nem a cunhada, nem o casal artista conferiam mais o relógio com tanta ansiedade quanto no começo do confinamento. Ambas casas desligaram ou deixaram a TV no mudo. Por muito tempo, a trilha que enchia as cozinhas era o repertório dos artistas ou risada do sobrinho. As receitas da mãe e das avós, que sempre as registravam em cadernos amarelos, ao lado de histórias relacionadas aos pratos, foram a terapia e troca de afetos possível por meses. As ancestrais teriam ficado orgulhosas. Foram as recomendações e talento das matronas da família que as fizeram atravessar a quarentena, apartar a melancolia e riscar na agenda, uma a uma, as semanas que previam faltar para se rever. E não é que cozinhar é mesmo uma forma de amar?

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