sábado, 20 de junho de 2020

Construção meditativa de pau de chuva

Só no isolamento entendi um amigo judeu que afirmava ser o teatro a verdadeira religião dele. Apesar de também vir duma paixão pelas coxias (os bastidores teatrais) e de ser meio budista, meio macumbeira, na quarentena experiencio que a arte é minha religião raiz. Claro que me apoio noutras "muletas": me movimentar faz com que a serotonina fique num nível razoável para quando der uma encrenca consiga vencer a prostração e resolver. O estudo do que amo alimenta as inspirações, dá ideias e permite trocas que nos instigam. Meditar me deixa confortável nessa mente, que é a única que tenho. Ver filme ou série às vezes anestesia, às vezes traz novas descobertas - como agora que confiro Segunda Chamada, sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA) em que trabalho. Mas como é possível prever pela lista de auto cuidado acima, não dá para manter a constância em tudo nem em tempos pandêmicos. Quando a agenda ou a grana aperta, recorro à arte. Esta é uma obviedade para quem ensina artes, mas me esquecer na experimentação artística e vivenciar como ela reverbera para além da expressão ou linguagem que exploro no momento são encantos que surgiram com a pandemia. Farei uma associação didática com minha própria espiritualidade: embora meu coração seja macumbeiro, a cabeça é budista. E nesta segunda, aprendemos e debatemos temas que nunca ouvi nas outras muitas religiões que conheci: apego, auto centramento, aversão, inexistência intríseca do que nos faz sofrer, iluminação, reino dos seres famintos, não identificação com nossas emoções, obtusidade mental, entre outras cabeçudices. Não por acaso estou entre esses retiros, estudos e meditações há 16 anos: também sou cabeçuda. Volta e meia ouvimos dos facilitadores e mestres sobre auto geração de energia autônoma para romper a eterna sede dos carentes que sempre buscam tomá-la do que se apegam. É mais uma das tantas teorias que só a pira do corona me fez sentir. E enquanto não reverbera no corpo, é muito difícil que qualquer conhecimento se fixe em mim. Nos últimos dias andei meio caída: emoções angustiantes, que minha vigília crítica não conseguia jogar para escanteio, burocracias empacadas, estudos meio quadrados tomando a maior parte do tempo, cansaço de situações repetitivas cujas sugestões de resolução que muitos propuseram já foram exploradas à exaustão, mas somos incapazes de sustentar as melhoras. Quando fui estudar um livro que quero contar, encontrei entre os elementos de cena uma flauta diferente que já tinha imaginado de outra forma porque estava encostada. Desencanei de ensaiar a história que contarei e fui transformar essa flauta num pau de chuva. Planejei como tenho dificuldade de fazer em minha própria vida: separei tudo que usaria antes de começar. Ressignificar o mundo à nossa volta viabiliza que a gente ensaie pra mudar o mundo pra além do nosso universo particular. Criar sensibiliza a gente: minha gata causou brincando com os materiais que usaria, mas o processo me deixou tão encantada que ri dela feito criança. A arte é um terreno em aberto para nossa expressão: me satisfiz mais com as cores e brilhos do que com o som. E embora seja um instrumento indígena, me arriscar serviu também para ser mais generosa comigo. Não ouvi o que pensei que ressoaria, mas rebatizei para pau de garoa (meu marido está chamando de pau de sereno), mas me senti tão presente, esqueci tanto da vida que fiquei rindo espontaneamente, a playlist do Antonio Nóbrega combinou tanto com o momento que relativizei o som fugir do que imaginei. Na vida costumo ser mais sargenta comigo. A arte nos torna melhores porque comecei meio desgostosa com o que contei e terminei não só feliz, mas percebendo a mudança do estado de espírito e ficando presente o suficiente para curtir essa transição. A partir desse movimento interno terminei lidando melhor com todos no entorno. É uma meditação em movimento porque ficamos no momento em que agimos, mas também percebemos maior ânimo para as coisas externas. A arte possibilita que a gente exercite nossa criatividade, descubra caminhos, passe por cima do que não funcionou e celebre se esquecer entre tecidos, glitter, tesoura, grãos, durex, pincel e fita crepe. Que a gente leve esta criatividade ensaiada para todas áreas da vida que precisam. Listo essas impressões marcantes porque já ouvi e li várias espiritualidades que oferecem o mesmo. Mas eu cheguei em cada ficha que caiu fora dos retiros, vivências, rodas e workshops que experimentei - alguns desses também me fizeram bem, mas nem tanto quanto a experimentação artística. Que vocês experimentem também - e comentem, lógico!

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