quinta-feira, 28 de julho de 2016

Vigília de estranheza

Mexi na bolsa da minha mãe depois de anos, infelizmente não com curiosidade infantil e sim para autorizar a internação dela num andar enquanto meu pai se tratava noutro, dentro do mesmo hospital. Tinha horas que meu piriri de dias tinha sustado. A carteira dela permitiu uma viagem no tempo: tinham fotos de infância, pose minha milagrosamente séria, do meu sobrinho bebezinho, dela nova, do meu pai no Exército - uma foto que já tive e não sei onde foi parar.
Não sabemos cáspita nenhuma sobre os pais virarem crianças, prática de compaixão e empatia antes de cuidarmos ativamente de quem nos permitiu chegar até aqui inteiros e "sacudidos". Há dias quando perguntavam se eles já não estavam sendo cuidados e o que eu ajudaria continuando em vigília ao lado da cama da mais fragilizada, nem sabia responder, nunca administrei um na semi intensiva e outro no quarto comum, só sentia grudada ao rodapé do leito, para... Mais tarde assinar papeis? Pedir pra ler a meditação da mulher da agenda da recepcionista? "Tourear" o pai ansioso? Não saber o que fazer com minha própria impotência?
Uma vez brinquei que só faziam e diziam o que queriam feito crianças na 3a idade e ouvi pra termos a mesma boa vontade que tiveram comigo pequena. Mas tenho a impressão que ao invés de ser educada, fui treinada militarmente pelo meu pai. E sem ter tido filhos, nem ensaiei razoavelmente para ser uma cuidadora mais certeira. Só sigo improvisando, num "nervo" que erre a mão e caia ou sei lá o que. Sigo desconsiderando o mal estar de não dar conta de tirar qualquer sombra de doença de quem gostamos com a mão. Descobrir que pior que ficar doente é quem amamos adoecer e não ter muito o que fazer. Comemorar ter trazido o computador, mas para que mesmo? Não continuo cinco minutos plugada nele sem parar e ajudar numa neura de que precise de algo que não sei fazer. Nenhum dos livros ou apresentações que ainda não consegui conferir do curso recentemente terminado será colocado em dia. Teria que dispor dum espaço já ocupado, ainda que momentaneamente. Ouço pra não esquecer de respirar, mas quem faz isso conscientemente com medo dos próximos capítulos dessa vigília? Ou sei lá, quem deixa de fazer, mesmo superficialmente? Os parentes ajudam a revezar, não é muito levezinho fazer esse cuidado aprendido aos 45 do segundo tempo sendo filha única e ainda assim o tempo no hospital é DI-LA-TA-DO. Que horas a medicação vem? Quando o mal estar passa? Só amanhã o médico chega? Quem diria, sentir saudades do trabalho. Não é que por planejamento, caracterização e projeto de aula em dia fica incrivelmente mais divertido de repente? Limpar a caixa de areia da gata, coisa mais delícia! Fazer algo que dependa de nós e saibamos que damos conta. Lidar com o "o não sei quando melhora, como e de que jeito"... Sei que não daria conta de viver para estudar o corpo humano, mas será que esse processo para um médico traz o mesmo tanto absurdo de descoberta impensada?
Lógico que tem também seu lado bom: uma colega me vibrou amor incondicional sem que eu esperasse - estes presentes intangíveis, sempre vindos de onde não se espera - e perguntou se me achava merecedora do amor incondicional divino. Fiquei horas argumentando "cabeçudamente" que sim, não só com ela, mas com meu namorado à noite também, para muitas impressões depois sentir que sinto, mas minha razão não tem muita ideia do que se trata, não alcança compreender. Até finalmente entender o que dizia a professora do curso recém terminado: sem sentir e pensar igual, nada fluirá. Somos todos parte da mesma família: conectados, ainda que pareçamos apartados. Aquela experimentação de que cismávamos ser uma gota à parte e com tanto amor vibrado de tudo que é lado, vivenciar que nunca deixamos de ser oceano. Uma incógnita o que vem pela frente, mas como previa Guimarães Rosa "viver é perigoso". Topando o medo subitamente vamos nos fazendo fortes. Ainda que com receio e atrapalhada.

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