São Paulo envelhece se transmutando mais uma vez. Se te disserem
que nossa cidade é incrível ou é difícil, os dois estão certos. É que a capital
paulistana são muitas: temos o recorte dos alternativos, dos periféricos, dos
descolados, dos endinheirados, da inclusão, dos vidros fechados e das portas
blindadas. Temos a dos que circulam na Praça dos "arteiros"
Roosevelt, que compram mais em conta na José Paulino ou ainda mais barato, no
Brás, que se resolvem correndo na Paulista, que improvisam com as bugigangas da
25 de Março, dos que nunca saem do Capão Redondo ou do Heliópolis e vivem
felizes e à margem, dos que circulam na baladeira Vila Madalena, dos que comem
nos Jardins, fazem projetos nas comunidades ou nem sequem sabem que é possível
caminhar a pé por ela.
É a cidade para os que tem tanta curiosidade e sede de viver que
não cabem nos bolsos.
Onde volta e meia encontramos parceiros de troca. Pedimos
e descolamos bolsas de estudos. Descobrimos um filme para professor mais em
conta às duas da tarde no - quem diria? - cinema patrocinado por bancos há
anos. Vemos peças de graça ou a preços módicos, bancadas pela indústria ou
comércio. Reabastecemos as energias no parque.
Choramos de nervoso com serviços públicos estaduais meia boca e -
pasme! - aparecem estranhos oferecendo ajuda. Não é São Paulo que tem pressa. É
o sistema. Venha da Paulista à periferia para conferir se não sentirá a mudança
de ritmo da cidade.
Por mais que pareça imprevisível, tínhamos uns sambistas meio
entalados em nós: já prestigiávamos um colega aqui, uma roda de samba acolá,
mas quando o Carnaval de rua ressuscitou, foi o esplendor: quem nos imaginava
há dois anos correndo atrás do Alceu Valença na Sumaré? Podemos não contar com
o gingado mais encantador no pé - é a mania hiperativa de abraçar tudo que é
frela e curso - mas que o coração salta no compasso do tamborim, isso sim!
Cabe na cidade quem trabalha, estuda, cuida de filho três turnos e
quem despenca para Parelheiros estudar clown.
Por isso às vezes ela nos cutuca a gastrite: depois de anos se apropriando do
espaço público, meter cinza nesta altura do campeonato? A cidade abraça o nerd
que só quer Netflix e os maratonistas, tem abertura para tudo que é tribo.
Nela podemos nos reinventar de atriz fantasiada de executiva de
comunicação à professora, contadora e escritora de histórias. Obviamente que na
transição usufruímos menos do mundo que ela oferece. Mas sempre descobrimos uma
área verde pública, um ensaio aberto, uma exibição sem custos, uma
confraternização pague quanto achar que deve e nos reencantamos com a
descoberta de novos companheiros.
Certamente o centro histórico se ressente de passarmos batido pela
história que
carregam suas esquinas - minha paixão por ele remete à época em
que ia trabalhar com minha mãe e ganhava lembrancinha no velho Mappin até as
temporadas de ensaio e ocupação de mostra estudantil no baixo Bexiga, dividindo
teatros antigos com os morcegos.
Tem quem não acredite, mas juro e provo que São Paulo tem
cachoeira sim: dá até
escorregar em trilha, trombar com cobras e macacos,
escolher de que ângulo conferir a capital: o mais saudável e com cheiro de mato
da Pedra Grande ou urbanóide congestionado de antenas do pico do
Jaraguá.
Viver aqui é conhecer uma merreca da cidade e não espantar muito
com quem circule menos ainda. É jurar zerar a lista de museus ainda este ano e
perceber que o tempo comeu os finais de semana e fomos nos mesmos picos de
sempre. É mais ouvir ou ler os amigos que revê-los: um tem filhos, outro está
doente, o terceiro mora na outra ponta e nem sempre a $ alcança, o quarto
perdeu trabalho e está frelando nonstop,
o quinto tem um trabalho de subsistência e outro por paixão, a sexta
estuda pra
concurso, o sétimo tem horários mais malucos que os seus e temos também os
maníacos por limpeza - é, a cidade cinza também acinzenta os móveis, nem todos
relevam tranquilamente...
Morar pras bandas de cá às vezes é se perder nos próprios sonhos.
Mas também é, às vezes atravessar uma avenida cinza e se maravilhar com a grama
se enfiando dentro da sandália no canteiro. Às vezes se encantar com vizinho de
banco no transporte público. Ouvir as velhinhas da época em que
se transitava
de bonde nestas terras. Estranhar perceber que o pessoal da Paulista não pode
parar, mas 35, 40 min dali já ter morador com cadeira na calçada. Gozar do
sotaque negado. Ouvir Hare Krishna no centro financeiro da cidade. Se
maravilhar com por do sol multicor desviando dos arranha céus.
Quando encaramos maratonas trabalhísticas ou de estudos por uma
temporada, é jurar se mudar para a praia ou
interior, mas chegando lá estranhar preconceitozinho ou falta de opção musical. No retorno,
chiar de enfrentar 4 estações de tempo diárias, mas sair rindo de mochila e
equipado. Perder a condução xingando, mas também bater papo com o motorista e
ele avisar o ponto que precisa descer. Como diria minha avó, as coisas não ornam em Sampa.
Meio lugar comum explorar as contradições paulistanas, mas quem
abraça o mundo podia ser de outro jeito? Ou ainda não fui embora por não ter
encontrado "meu interior", ou ainda não realizei tudo que sonhei por
estas bandas. Me aguarde Sampa!