sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Peça da década de 60 retrata inquietações atuais

Há anos atrás quando ainda interpretava razoavelmente bem o papel de quadradinha sem questionamentos muito latentes, assisti a peça A Mais Valia Vai Acabar Seu Edgar, com atores que se transformaram em meu amigo e minha professora anos mais tarde. Eles tornavam mais didática aquela velha lição da sociologia, de que ganhamos bem menos do que valemos do jeito mais lúdico possível. Já tinha encarado umas lições marxistas por recomendação duma prima um tempo antes, na Ação Educativa, mas eles descerem do palco provocando:
- Toma que a vida é tua - e soprando de volta a existência pra gente na plateia, foi um chacoalhão bem transformador. Passei anos com o flyer, pensando de dizer à minha prima professora que levasse os alunos para ver. Em tempos de redes sociais, achei um dos atores e mais tarde incentivada por amiga da área, entrei na Cooperativa de Teatro, fiz licenciatura em artes cênicas e no auge da crise da comunicação, migrei dos frelas em home office para a sala de aula.
Sei que muitos dirão que só o palco não faz isso. Tinha sim, toda uma busca paralela, com oficinas, retiros, apresentações, vivências, meditações e experimentações procurando me conhecer mais. Mas uma encenação pode sim, desmoronar uma venda falsa que só a sociedade capitalista nos faz tão bem: que os mesmos papeis caretas encaixarão em todos sem efeitos colaterais nenhum.
E mais uma nesta
linha está em cartaz em São Paulo: O Assalto, no espaço da Cia da Revista, na Santa Cecília.
À primeira vista um bancário engorda seu banco de horas extras e um faxineiro negocia para limpar sua sala. O primeiro se movimenta para comer na rua e deixá-lo terminar o escritório, mas parece começar a delirar, uma loucura tão lúcida quanto a da lixeira Estamira, em seu documentário, nos fazendo ver de modo crítico como as máquinas corporativas podem nos transformar em robôs desumanos. O faxineiro ameaça se abrir, mas faz movimento de que limpará outro andar, já que o delírio crítico do bancário não acaba, quando percebe que foi trancado ali. O bancário negocia um valor irresistível para que fumem juntos, porém o mundo corporativo parece tê-lo enlouquecido de uma tal forma, que os insultos e briga são inevitáveis. É quando o faxineiro percebe que o bancário não está apenas pirando em sua crítica social muito verdadeira de como o trabalho pode moer o sonho dos funcionários... Percebe-se envolvido no meio do golpe bem planejado pelo bancário amargurado, que toca em feridas incômodas para ambos. Em meio à solidão do bancário, confissões inesperadas do faxineiro, trocas inesperadas vão acontecendo, de forma que a tensão se instala e os espectadores aguardam ansiosos o desfecho. O faxineiro se vê meio sem saída por não compactuar com a rebeldia com razão de ser do bancário, embora este finalmente tenha dado a opção dele sair da sala. Se o bancário envolve o faxineiro em seu golpe ou este finalmente o convence de que é honesto e precisa terminar outro andar... Só conferindo para descobrir.
A encenação começa divertida, irônica e até brinca com os ritmos musicais que os personagens ouviriam. Enxergar colegas raptados por trabalhos mercenários ou a falta de opções de parte dos trabalhadores menos favorecidos corta o bom humor com os diálogos sarcásticos dos personagens. Quando o conflito entre os dois vai embrutecendo, vamos nos perguntando que saída encontrarão para o impasse entre eles.
Qual a relação da encenação atual com a antiga que conferi anos atrás e me fez vazar do jornalismo? Bem, se o espectador não for ainda protagonista da própria vida, poderá sair questionando e buscar se apropriar de sua existência. Saber que a dramaturgia de José Vicente é da década de 60 e antecipou como as relações de trabalho chegariam a contradições tão violentas dá uma curiosidade a mais para acompanhar a humanidade e dilemas dos personagens.
Temporada até 27 de abril
terças, quartas e quintas às 21h
Espaço Cia da Revista
Al. Northman 1135
R$ 40

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