sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Atravessamentos do território centro-periférico em meu corpo

Estudar na Luz me faz revisitar medos e encantamentos que a região provoca em mim, muito antes de começar estudar performance pelo programa Diversitas da FFLCH/ USP nos teatros do Faroeste e Contêiner. Retornar ao bairro com mais frequência me trouxe de volta à casa em que mais me sinto à vontade: o teatro. Ao mesmo tempo chegar até ele, depois de dias compridos me desvencilhando de trabalhos e fazendo auto-cuidado, faz com que olhe no rosto deste sentimento indesejável: o medo. Há pouco tempo cismava que o receio de andar sozinha no local vinha da comunicação e cultura de massa sempre divulgando a percepção de perigo e abandono no entorno da estação histórica da Luz. Nesta semana, ia para o estudo semanal no espaço da Cia Mugunzá, pondo reparo num morador ou visitante próximo que cantava, ria e parava para dançar. Fiquei um pouco alerta com a impressão de que podia ser imprevisível. Até que ele me olha e quer saber:
- Você está bem?
- Sim, só cansada.
- Vai dar tudo certo! Você é guerreira!
Em pouco tempo me lembrei de onde surgiu meu incômodo de andar por ali sozinha: uma vez fui numa oficina no Sesc Bom Retiro, os funcionários do metro deram muitas recomendações e explicações pra não cair em algumas ruas, pois alertavam ser perigoso. Era cedo ainda, mas acho que terminei atravessando a região que temiam que passasse. As pessoas pareciam estar num pós ressaca, pareciam distantes e ao mesmo tempo não estavam à vontade com pessoas de fora rondando a quebrada tão familiar para eles. A sensação era de um mal estar, compaixão, pressa, preocupação e impressão de que as ruas ficavam mais compridas e entrávamos num "tempo fora do tempo", pois o relógio dava mostras de dilatar a passagem dos minutos. Nada me aconteceu, porém tive o mal estar do estado dos moradores confirmar a má impressão provocada por matérias e trecho de novela retratando o local pesadamente.
Mesmo em meio a tantas questões social, de saúde pública e econômica disputando a narrativa das causas dos problemas locais, me atraio pelo Parque da Luz: uma vez fui observar as prostitutas para uma peça em que o diretor nos cobrava que lembrássemos elas, porém se não fosse um colega alertar para movimentação delas e de seus clientes, passaria batido e não as encontraria.
Já me perdi indo estudar na rua do Triunfo, entrei nela no começo e também tive a impressão assustadiça de cruzar trechos em que as pessoas têm abstinência, medo da repressão, ansiedade, trauma do que já sofreram e angústia da falta de apoio, suporte, tratamento e alternativas que passam. De novo, nada me ocorreu e tudo se resume a uma má impressão da situação dos que vivem ou circulam ali. O perigo parece meio fictício.
Tenho memórias especiais com a Pinacoteca, suas palestras engajadas, as paredes retrô, o cafezinho adorável, os túneis, corredores e elevadores que nos confundem e o educativo que volta e meia me abastece de materiais de trabalho.
Relembro uma peça de rua conferida com um amigo, já a caminho da rua Helvétia, em que tivemos a impressão de que os moradores estavam incomodados com a atuação dos atores e mais cedo ou mais tarde ambos se estranhariam. Me encantei com o aspecto histórico da estação Julio Prestes e também dilatei o tempo conversando com este colega, outro artista.
Resgatando caminhadas pelo território feitas com o pessoal que estuda comigo, com o professor que estuda vizinhança e nos situou de algumas questões do entorno, foi um alvoroço de lembranças passar pelo Bom Retiro, onde já comprei roupa numa loja que trabalhava com mulheres e jovens carentes, aproveitei oferta com minha mãe, aprendi a conferir se a roupa servia sem prová-la e que era melhor comprar nas travessas.
Na aula que tivemos com os Guarani na Casa do Povo lembrei das peças vistas e perdidas com amigos na Oficina Cultural Oswald de Andrade (além de cair de amores pelo canto e ficar preocupada com os ataques que os indígenas sofrem), de ter estudado sobre universo griô para o ator lá, comido e bebido na rua em que os artistas mais circulam e ido ao médico ao fim da rua Três Rios.
Os debates sociais, culturais, educativos e artísticos que temos tido com professores e colegas desde o começo do ano têm me deixado à flor da pele. Semestre passado, voltando duma consulta, já noutro bairro, porém falando com os amigos de apresentação performática, vi uma moça chorar e eu, que sou como minha tia e não podemos deixar chorões sem uma palavra de apoio, fui conferir se podia ajudá-la, a assustei sem querer, soube que tinha perdido um amigo gay que se suicidou, conversamos e terminei oferecendo só um abraço, que não dá pra consolar muito mais que isso nessas horas. Era dia de à noite voltar à Luz e nestas ocasiões estes choques me afetam mais.
Costurando minhas lembranças e medos com relação ao bairro em que tenho estudado, mas já fui conhecer projeto sócio-educativo em que um amiga da faculdade era voluntária, pondero que apesar da má fama local, já passei mais sufoco fora dali, portanto não parece haver razão de ser esse receio meio instintivo que me assalta quando chego muito em cima da hora pra a aula.
Até nós jornalistas podemos ser suscetíveis ao discurso sensacionalista da imprensa.

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