terça-feira, 24 de setembro de 2019

Narrativa Coletiva Feminina

Para quem busca entender mais sua história, das mulheres da família ou se espanta com as semelhanças dos contextos femininos no geral, apenas assistam a peça Quarto 19! É um monólogo feito pela atriz Amanda Lyra, baseado em conto da escritora Doris Lessing, que senti próximo da tragicomédia (estilo que adoro: tão nossas próprias vidas!). A performer divide o espaço cênico do Teatro Eva Hertz com uma cadeira e um cenário simples verde. A última vez em que vi algo tão enxuto e extraordinário foi a Fernanda Montenegro fazendo Simone de Beauvoir no teatro do vizinho CEU Meninos. Amanda, que também traduziu o conto britânico, divide com a plateia a trajetória dum casal sensato, inteligente e com vidas profissionais independentes, que aos poucos vai se envolvendo num roteiro que os aprisiona cada vez mais: uma relação clássica, gravidez, casamento, outros filhos que vem em seguida, a casa de jardim com vista para o rio, a empregada, o trabalho do marido que financia todo este universo, a trégua na carreira que a mãe publicitária dá e o consequente embotamento da identidade dela vivendo em função disso tempos depois. O público passa várias spoiler pode terminar em perda de amizades e leitores.
cenas se divertindo, percebendo semelhanças com suas próprias vidas e - quem sabe? - rindo de nervoso. Durante um razoável tempo do monólogo é a narrativa da classe média burguesa, justificando a pasteurização de suas vidas inteligentes, bem sucedidas, recebendo amigos, sendo referência para os mesmos e encarando peso - e o preço - que manter isso tudo acarreta. A atriz alterna entre narrar e trazer a história para a primeira pessoa, sem deixar de nos fazer ver o cenário que descreve, muito menos nos distanciando do que sente a ex publicitária, que diversas vezes flerta com o desespero entre os três filhos demandando atenção o tempo todo. Aos poucos ela e o companheiro tentam buscar um equilíbrio: as crianças vão para escola, mas ao mesmo tempo em que a protagonista tem espaço, sente-se mal por deixá-los tanto no colégio. Ao chegar as férias, as mesmas parecem durar demais na administração do sem fim de energia dos pequenos. Muitas vezes ela tenta se refugiar no jardim, porém lá parecem se esconder seus próprios demônios. Tranca-se no banheiro, mas as crianças a demandam no rodapé da porta. Uma babá vem socorrer o quanto essa mãe se esgota, exaure, necessita espaço e não aguenta mais viver em função das crianças. O marido já dá suas puladas de cerca, mas como são inteligentes, razoáveis e tem uma casa, filhos, financiamento e empregadas domésticas para manter, o perdão - ou qualquer outra emoção de nome impronunciável - faz com que a relação vá cozinhando em banho maria. A ironia permeia muita das falas e dá um respiro ao cotidiano previsível e cansativo da personagem. A família negocia espaço para a mãe e esta ganha um quarto no qual uma espécie de placa "não perturbe" é colocada, porém não demora muito para que filhos e empregadas invadam o espaço que precisa. Ela consegue um dinheiro com o marido, vai para o distante centro da cidade e lá aluga um quarto no qual consegue solidão, não ter tantos pedidos para atender, nem está fazendo tanta coisa quanto em casa, onde já ajuda as empregadas para se ocupar. É nesse Quarto 19 em que afinal consegue alguma paz, ainda que temporariamente. Ali ela não é mãe, esposa, patroa. Aos poucos ela vai dilatando o tempo nesse local, ao passo em que o marido periodicamente dá suas escapadas. Ela ainda vê os demônios que a rondam no jardim e aos poucos, o universo doméstico parece ficar cada vez mais distante do envolvimento dela. A encenação ganha toda uma reviravolta quando o marido descobre onde passa tanto tempo. A mulher oscila entre se apiedar com filho doente, fugir para o Quarto 19 e se perturbar com não encontrar mais quem é ou quem foi nessas escapadas para se refugiar no hotel do centro. Não demora muito, já não reconhece mais o marido e este cogita separar, tem amante e ela inventa uma saída qualquer com desculpa esfarrapada, além de criar um amante no desespero da conversa. Amanda tem todo um jogo corporal que nos dá uma ideia do desespero e perda do olhar de quem a personagem é, além de interpretar bem como a hiper demanda duma vida tão aparentemente perfeita pesa para quem cuida do caos doméstico. Me surpreendi com o destino da personagem, mas descobri um colega na poltrona ao lado, coincidentemente voltamos para o mesmo bairro partilhando encantamentos, alegrias e empatia com a protagonista do texto de Doris e ele, também da comunicação com incursões cênicas pela vida - não se chocou com o desfecho da narrativa. Para quem batalha pelos direitos femininos vale ver, porém transformador mesmo deve ser quem não compreende a importância do feminismo. Esta não é uma crítica (quem sou eu para avaliar a competente atriz?) mas Amanda divide conosco sua tradução, ensaio, adaptação e performance no Teatro Eva Hertz do Conjunto Nacional, próximo ao metrô Consolação, nas sextas às 21h até 18 de outubro. Impressionante como o texto de Doris segue atual, em tempos infelizmente sombrios e machistas. Amanda já conquistou diversos prêmios com a performance e passamos parte significativa do monólogo torcendo para que a personagem separe, volte a trabalhar ou fuja. Como a protagonista resolve o peso desta vida classe "mérdia" já não revelarei, porque

Nenhum comentário:

Postar um comentário