quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Banzo do sertão

Há dois meses voltei do cerrado mineiro, onde troquei textos das mesas redondas do XV Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas por hospedagem e alimentação solidárias na Chapada Gaúcha (MG). Mas o cerrado da terra de Guimarães Rosa não saiu de mim. Vi as barraquinhas de buriti e capim sendo ocupadas aos poucos na praça da pequena cidade. Fui generosamente recebida pela presidência da Adisc, Agência de Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável da região, por profissionais e agora novos amigos, que fui conhecer e me enturmar lá no evento mesmo. Quando passei mal de "overdose da produção do cerrado", depois de comer castanha de baru, sorvete de araticum e suco de coquinho, foi a mãe do meu anfitrião que me fez um chá de boldo do pé da planta - depois só faltei vomitar os olhos, ouvidos e nariz, mas ao menos salvei a noite pra me encantar com as dançarinas, o boi de - papel marchê? Que material faz aquele ator amador dar vida ao boi das lendas que li pra vários estudantes, mas só me apaixonei ao vivo no norte de Minas mesmo? Quando comecei a botar os bofes pra fora em plena cobertura da mesa sobre turismo de base comunitária (ah, a palestra em que chorava pela conexão com Gabriela, da Estação Gabiraba, que faz este turismo atípico no norte!), um dos organizadores da caminhadona Caminhos do Sertão, Almir Paraka, parou uma entrevista que dava para outra pessoa e foi me socorrer. Eu também já fui ajudada por estranhos em São Paulo quando passei mal em plena pauliceia desvairada, mas na roça mineira é como se não fôssemos estranhos, como se virássemos todos sertanejos, uma "familiazona" sem fronteiras (e por acaso não sou? Com avô que levantou a árvore genealógica de gerações e mais gerações jurando de pé junto: "somos caboclo com caboclo! Sem parente de fora do Brasil"!). Aliás tô pra ver cara mais inteligente que este Almir. Ele e outros palestrantes lá das mesas redondas do encontro fizeram renascer em mim aquela velha paixão jornalêra "que quando a fonte entende muito ou é apaixonado seja lá por que assunto for, eu me encanto junto até o fim da entrevista ou cobertura". No meio do meu "passa mal", comigo causando lá no fim de um dos debates, a Damiana Campos, do Instituto Rosa e Sertão parece que me deu um reiki, uma benzedura - bom, passando mal qualquer ajuda informal e dada de bom grado é bem vinda, mas lembrei da benzedeira que tive anos e anos aqui na esquina de casa, em plena "SãoPaulona", mas que infelizmente já se foi... Por falar no trabalho desta artista mineira, Damiana, as apresentações, articulações do Instituto durante as discussões e ainda por cima me receber para almoçar na mãe dela evocam memórias que se tatuaram em mim, só ainda não entendi onde - por poros e mais poros deste meu maior órgão - a pele impregnada de lembranças afetivas! Difícil ordenar em texto mais ou menos linear tudo que me capturou o coração irremediavelmente lá, mas logo que cheguei e ainda conferia a exposição e programação se configurarem aos pouquinhos no município, conheci seu Aleixo, da comunidade dos Patos, com suas memórias e histórias que tanto, tanto lembravam meu avô paranaense, registro vivo da migração de sua família da Bahia até Minas e a resistência deste povo na briga pela terra contra empresas avançando em suas demarcações rústicas de propriedade...

E depois, mais tarde, conferi-lo comandando a folia de reis e contando que ouviam em família:
- Ou dançam ou apanham! - e assim nasceu a primeira diretora teatral amadora e autoritária, diríamos aqui no "teatrão" paulistano...
Teve uma noite em que ganhei a graça de ver chegarem os caminhantes do Caminho do Sertão que mencionei acima, depois de uma semana circulando 160 km, refazendo a trilha de Riobaldo, do Grande Sertão Veredas, recebidos com festa em tudo que é aldeia local, não foi diferente na Chapada, em que cantaram para eles - as talentosas irmãs artistas Campos da cidade deste Encontro, conferi várias pessoas colocando água para eles descansarem os pés, preparando um café caprichado para que depois os participantes se "refestelassem" na comidinha mineira, além de muitos moradores e visitantes cheios de dúvidas, curiosidades e orgulho deles puxando uma prosa sem pressa.
Como se não bastasse tanta memória de aquecer o peito, ainda ouvi a missa sertaneja cantando "ó Deus salve o oratório"... como minha tia conta ter feito nas procissões do interior de São Paulo, então desconfiei: os interiores desse Brasilzão se conversam, não tem problema a lonjura que os distancia!
Fiquei muiiiiito animada pra um mestrado depois de prosear com a antropóloga Ana Carneiro, que fez um "estudão" sobre as receitas e histórias dos buraqueiros - ah sim, você sabia que além dos povos originários quilombolas e negros, temos também as veredeiras, machucadeiras e estes que a escritora estudou pela região do norte mineiro?
Reforcei meu apoio aos assentados ouvindo Maria, que veio de Brasília, falou nas mesas redondas e indicou aos "caipiras do asfalto" que não podem gastar os tubos em orgânicos Pão de Açúcar o serviço de entrega Céu de Passarinho. Por aqui podemos comprar do Armazém do Campo e dar um olé nos atravessadores que só encarecem as revendas, sem dividir lucro com produtor.Com relação a custos, me encantei ainda com o pesquisador Victor esclarecendo que valores de revenda tem embutido não só o que ganhamos, mas impacto ambiental, na saúde, impostos, parceiros para chegar aos clientes... E que acreditamos que o justo seria o pequeno produtor atender ao pequeno consumidor urbano!
Quis reforçar as lembranças, os agradecimentos às acolhidas, os novos amigos e também REcontar aos que já me "cantaram para dar aulas de teatro por lá", pois a arte educadora que fazia isso na Chapada estava voltando ao Rio de Janeiro: repassei tudinho, tim tim por tim para meus alunos e não só - também aos professores no Rede em Roda, encontro de partilha pedagógica que agitamos por aqui, na cidade que não para. Dividir que desconfio terem sido minhas primeiras férias em que relaxei de verdade, voltei com dor no coração de retornar, a ponto de passar dias chorando com a demora no trânsito, a poluição sonora,  a poluição das nossas vias aéreas, a distância e demora para rever os amigos, pois muiiiiitos conciliam diversos trabalhos, uns pra arcar com as contas e outros para assegurar a atuação profissional significativa que caçamos por toda uma vida.
Só sei que há uma semana e meia também visitei uma antiga amiga em Santos, embora não seja uma cidade tão sossegada quanto a Chapada Gaúcha, é um município que namoro viver quando aposentar (estou flertando com a ideia por amadurecer ou ficar tiazinha mesmo?). Foi outro retorno doído, pelos mesmos motivos que olhei de outra maneira ao vir do cerrado mineiro. Devo estar com alergia à cidade gigante pela 1a vez na vida. Por conta de que insistimos então? Parcerias, diversidade na programação cultural, parques que aliviam a falta do mato, parentes que "seguram o tchan" emocional conosco quando o bicho pega, amigos que apesar dos raros reencontros valem uma teimosia urbana ao nos revermos, retornos profissionais que começam a valer a pena, contações de histórias que me enchem o coração.... Até quando daremos conta de mais de 11 milhões de vizinhos, só Buda sabe!

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